Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Vicente Nunes Moreno (UNISINOS)

Minicurrículo

    Mestre em Comunicação Social pela PUCRS, com pesquisa voltada para o campo da narratologia e do estilo cinematográfico. Graduou-se em Realização Audiovisual pela UNISINOS (2005), bacharelado onde atua como coordenador (desde 2019) e professor de montagem, roteiro e direção (desde 2011). Foi também professor convidado na FAP/UNESPAR e no Curso de Especialização em Cinema da UNISINOS. Como cineasta, atua como roteirista, diretor e montador, tendo participado de mais de 70 produções audiovisuais.

Ficha do Trabalho

Título

    Do outro lado do muro: a restrição do olhar em Zona de Interesse

Seminário

    Estudos de Roteiro e Escrita Audiovisual

Formato

    Presencial

Resumo

    Analisaremos a modulação narrativa de Zona de Interesse e sua opção por uma focalização externa. Esse distanciamento e a recusa em acessar a visão dos personagens tem implicações não somente estéticas, mas também éticas. Assim como o muro que circunda o campo de Auschwitz, há uma barreira entre espectador e personagens, uma lacuna de conhecimento que suscita um enigma e lança um convite à imaginação. Afinal, queremos nos aproximar de tamanho horror?

Resumo expandido

    O romance Zona de Interesse, de Martin Amis (2015), abre com uma antiga parábola sobre um rei que mandou seu feiticeiro lhe construir um espelho mágico. Em vez de um simples reflexo, o espelho refletia a alma de quem o encarava, mostrando quem você realmente era. Mas o rei não conseguiu olhar para o espelho sem desviar o olhar. Ninguém conseguiu. Essa parábola já traz à tona um tema caro ao livro e ao filme homônimo dirigido por Jonathan Glazer (2023) que iremos analisar aqui: o olhar interditado, o olhar interrompido, ou ainda, a incapacidade de olhar.

    Para essa exploração, lançaremos mão do conceito de focalização, cunhado por Genette (1972) e transposto para o cinema por Jost (1987), uma importante ferramenta para qualificar e entender a modulação das narrativas. De partida, já fica aparente uma grande diferença entre o livro e o filme. Enquanto o livro é construído em uma focalização interna variável, alternando entre a narração em primeira pessoa de três personagens, o filme opta por uma pouco usual focalização externa, que nos mantém numa perspectiva distanciada, sabendo menos do que os personagens.

    Examinando o roteiro do filme enquanto texto, observamos como essa focalização externa é construída. Há uma prevalência das descrições de ações e ambientes sobre as falas. Nos blocos de descrição, quase não são descritas expressões ou reações dos personagens, sugerindo certa neutralidade maquinal das ações. A forma como o roteiro é filmado amplifica esse efeito difícil de sugerir com palavras. Com câmeras espalhadas pelo cenário, muitas delas ocultas, sem operador presente no ambiente, parecemos ainda mais distantes, como se observássemos os personagens por múltiplos ângulos de câmeras de segurança. Há ainda uma rigorosa recusa a qualquer ocularização interna, que reproduza o ponto de vista ótico do personagem. O tão popular binômio rosto+plano-de-olhar aqui parece proibido. E isso não é um acaso. Um dos grandes temas do filme é justamente a recusa do olhar. Há um muro que separa a casa da família do Campo de Auschwitz, que bloqueia a visão dos personagens e a nossa, como uma barreira simbólica que materializa a necessidade inconsciente de não encarar o horror que mora ao lado. O acesso negado à visão e à cognição dos personagens aumenta a sua ambiguidade e lança um enigma: como é possível viver uma vida no campo de aparente harmonia familiar, no seu “espaço vital”, ao lado de um espaço de morte, tortura e perversidade? Há aqui uma evidente dissonância cognitiva, como no conceito proposto por Festinger (1957), onde o inconsciente aceita o contraditório em defesa do ego.

    Poderíamos dizer que há também uma dissonância de outra natureza, uma dissonância entre os níveis de conhecimento da narração. Ao contrário dos personagens, sabemos muito pouco sobre as circunstâncias e o entorno das ações. Cabe ao espectador, com seu repertório e imaginário do holocausto, reconhecer certos códigos e preencher as lacunas, superando, em parte, a limitação de conhecimento imposta pela narração. Nós não vemos o que acontece para além do muro, mas temos alguma referência disso, podemos imaginar. E é nessa imaginação que reside boa parte da força do filme, rompendo com a aparente frieza da distância. Como em outras narrativas em focalização externa, é nesse convite a preencher a lacuna cognitiva entre narrador e personagem que a imaginação do espectador é provocada. Há uma força gravitacional que nos impele a fechar, ou querer fechar, essa brecha, corrigir esse “desequilíbrio” cognitivo. Mas no caso específico de Zona de Interesse, fica a dúvida: queremos mesmo saber o que eles sabem? Ver o que eles vêem? O horror nos atrai, mas também nos repulsa. Seria o horror absoluto passível de ser visto, de ser representado? Ou só nos resta desviar o olhar?

Bibliografia

    AMIS, Martin. A Zona de Interesse. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

    CARROLL, Noël. Theorizing the moving image. Cambridge: Cambridge University, 1996.

    DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012.

    FESTINGER, Leon. A Theory of Cognitive Dissonance. Stanford, CA: Stanford University Press, 1957.

    CASETTI, Francesco. Inside the Gaze: The Film and Its Spectator. Bloomington-Indianapolis: Indiana University, 1998.

    GENETTE, Gérard. Figures III. Paris, Colleção Poétique, 1972.

    GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Brasília: Universidade de Brasília, 2009.

    JOST, François. L’Œil-caméra. Entre film et roman. Lyon: Presses universitaires de Lyon, 1987.