Ficha do Proponente
Proponente
- Maria Bogado (UFRJ)
Minicurrículo
- Doutora em Comunicação Social, com tese sobre cinema brasileiro contemporâneo, pela Escola de Comunicação da UFRJ. Atua como professora substituta de cinema na mesma instituição desde março de 2023. Lecionou em cursos livres e projetos formativos, como o curso Cinema Brasileiro Anos 2010 (Revista Cinética, 2021). Pesquisou epistemologias feministas, com publicações no livro Explosão Feminista (Companhia das Letras, 2018) e co-organização do dossiê da Revista Eco-Pós (2020) dedicado ao tema.
Ficha do Trabalho
Título
- Reavaliações da noção de dispositivo a partir da análise do filme Eros
Formato
- Presencial
Resumo
- O filme Eros (2024), de Rachel Daysi é feito a partir da montagem de imagens captadas a partir de um dispositivo: a diretora pediu a pessoas que filmassem suas “intimidades” em motéis. Esta apresentação busca comparar este filme com outros filmes do cinema brasileiro contemporâneo que também operam a partir de dispositivos. Com molhar impactado por teorias feministas, busca-se sublinhar como Eros apresenta uma mutação significativa no modo de apresentar o dispositivo.
Resumo expandido
- O filme Eros (2024), de Rachel Daysi é feito a partir da montagem de imagens de pessoas que filmaram suas “intimidades” em motéis. Trata-se de um dispositivo que remete a estratégias amplamente exploradas pelo cinema brasileiro contemporâneo: a provocação e apropriação, na montagem, de imagens do “outro”. Há um interesse pelos modos de filmar e auto-representações de pessoas diversas não necessariamente vinculadas aos registros cinematográficos. Cineastas como Cao Guimarães, Eduardo Coutinho, Marcelo Pedroso e Gabriel Mascaro são alguns dos que fizeram filmes instigantes a partir dessas estratégias. Os limites colocados pelo dispositivo deflacionam a imposição das intencionalidades dos autores provocando filmes que complexificam a noção de autoria e se mostram abertos a uma partilha do processo de criação.
Diante deste contexto, é interessante destacar a singularidade do filme Eros no modo de maquinar e apresentar o seu dispositivo aos espectadores. A maioria dos diretores que trabalharam com dispositivos no cinema brasileiro recente resguarda uma certa distância bem demarcada em relação aos mesmos. Os diretores agem como elementos exteriores que concebem o jogo, sem participar dele. Em geral, os dispositivos são apresentados de modo não corporificado, com a presença da palavra escrita em cartelas. Na maioria das vezes, não se vê, ao longo do filme, o corpo do diretor(e/a) em cena, como acontece em Eros. Embora Coutinho apareça em cena em diversos documentários conduzindo sua equipe e fazendo intervenções ao longo das conversas, no filme “Um dia na vida” (2010), que trabalha especificamente com apropriação e montagem de imagens feitas por outros, o dispositivo é apresentado apenas por meio de texto.
Eros se singulariza ao mostrar a diretora realizando o jogo do dispositivo. O filme se inicia com a realizadora se auto filmando dentro de um motel e é com uma voz off sobre essas imagens que apresenta o dispositivo. Sua exposição institui uma apresentação corporificada do dispositivo, remetendo ao que podemos chamar de uma “objetividade feminista”, termo cunhado pela filósofa Dona Haraway (1995), que afirma a necessidade de uma “escrita feminista do corpo” (ibid., p.19). Sem dúvidas, a realizadora se vulnerabiliza em alguma medida, mesmo que seja a única a deter, ao fim do processo, o controle da montagem. Um ponto de vista corporificado parte de uma localização limitada e, portanto, só pode ser parcial. Esse modo de exposição do pensamento impossibilita a emergência de um “sujeito cognoscente de todos e de tudo no interesse do poder desmesurado” (idem). Em suma, desfaz-se a possibilidade de uma apresentação neutra, não-localizada, do dispositivo. Poder localizar o sujeito de enunciação é, também, uma chave para poder responsabilizá-lo, tendo em vista seus poderes e limites. Nesta apresentação, é interessante destacar como a exposição de Rachel – seja ela compreendida com um ato de coragem ou de narcisismo – produz um saber localizado que se apoia em, nas palavras de Haraway, “vozes vacilantes”, de sujeitos que vivem “dentro de limites e contradições, isto é, visões desde algum lugar” (ibid.,p.34). O filme estabelece, assim, como propõe a epistemologia dos saberes parciais de Haraway, uma rede de conexões com os diferentes. Nas palavras da filósofa: “em política, essas redes podem ser chamadas de solidariedade. Em epistemologia, simplesmente de ‘conversa compartilhada’”. (ibid., p.24).
A análise comparada do filme permite, por um lado, verificar o potencial da montagem cinematográfica de construir narrativas e produzir sentidos para imagens amadoras que, em geral, circulam nas redes sem ganhar o retorno de um espectador distanciado. Por outro lado, o filme Eros permite uma reavaliação dos modos como os dispositivos vinham sendo operados na história do cinema brasileiro contemporâneo.
Bibliografia
- BRASIL, André. Pacific: o navio, a dobra do filme. In: Revista Devires, v. 7, n. 2, Belo Horizonte, UFMG 2010.
BRASIL, André; MIGLIORIN, Cezar. A gestão da autoria: anotações sobre ética, política e estética das imagens amadoras. In: Ciberlegenda, Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, Dossiê Realidade e Ficção, n. 22, jun. 2010.
COMOLLI, Jean-Louis. Cinema contra-espetáculo. In: Catálogo forum.doc.bh.2001, 5o. Festival do Filme Documentário e Etnográfico – Fórum de Antropologia, Cinema e Vídeo, Belo Horizonte, nov. 2001.
HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, SP, 1995.
PRECIADO, Paul. PORNOTOPIA PLAYBOY e a invenção da sexualidade multimídia Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: N-1, 2021.