Ficha do Proponente
Proponente
- Bruno Leites (UFRGS)
Minicurrículo
- Pesquisador na área de Cinema e Fotografia. Membro do Grupo de Pesquisa em Semiótica e Culturas da Comunicação (GPESC), linha “Agenciamentos da Imagem”. É professor no DECOM/UFRGS e no PPGCOM/UFRGS. Autor de “Cinema, Naturalismo, Degradação” (Ed. Sulina, 2021).
Ficha do Trabalho
Título
- A visão caleidoscópica em “Era o hotel Cambridge”
Formato
- Presencial
Resumo
- A proposta é aprofundar o conceito de visão caleidoscópica, a partir dos ditos de Eliane Caffé, em diálogo com o pensamento visual de “Era o hotel Cambridge”. Será o caso, ainda, de situar a cena do “coração da ocupação” frente a outros filmes produzidos em contexto de disputas por moradia no Brasil contemporâneo.
Resumo expandido
- A propósito de “Era o hotel Cambridge”, a cineasta Eliane Caffé (2017, p. 234) afirmou que procurou construir uma “visão caleidoscópica do mundo”: “No jogo cênico dessa trama ficcional, é a riqueza dos personagens e os pequenos momentos de intensa humanidade que sustentam o filme e permitem uma visão caleidoscópica do mundo”.
Nota-se que, para ela, a referência ao caleidoscópio diz respeito a uma narrativa abundante de multiplicidade. Caffé (2017, p. 245) associa a “visão caleidoscópica” à narrativa com força na intersubjetividade, capaz de organizar o “caos diário do real”. Nesse sentido, o real se define pelo caos e pela desorganização e é capacidade do cinema realizar o desejo da vida, qual seja, organizar-se: “Tudo o que vemos ao redor anuncia algum tipo de organização, concreta ou abstrata: gente, bicho, arte, história, natureza e cosmos.”
O caleidoscópio é um dispositivo ótico surgido no início do século XIX, composto externamente por um cilindro e internamente por um conjunto de espelhos. A luz entra por uma das extremidades do cilindro, atravessando uma variedade de vidrinhos e pedacinhos de pano, entre outros restos de objetos. O que vemos, mirando desde o outro lado do cilindro, é uma imagem simétrica que varia a cada vez que o movemos o dispositivo.
Charles Baudelaire viu no caleidoscópio uma mídia forte da modernidade: visão fragmentária, com arranjos instáveis, que variam ao menor toque e quase não se repetem no tempo. Jonathan Crary (2012), ao escrever sobre as “técnicas do observador” do século XIX, dá conta de visões críticas ao caleidoscópio: seria uma visão fechada a refletir sobre si própria, sem atingir o fundamento da realidade (crítica pelo aspecto ilusionista); seria uma visão desumanizada, com sobreposição da simetria, da precisão e da velocidade sobre o aspecto próprio e imperfeito do humano (crítica pelo aspecto industrial).
Como afirma Didi-Huberman (2015, p.160), a visão caleidoscópica não deve ser reduzida a um procedimento específico, mas a um “modelo teórico”, que se apresenta em imagens nas quais a “estrutura do tempo” é problematizada. Em “Era o hotel Cambridge”, a visão caleidoscópica pode assumir um sentido amplo, referente ao projeto de construção do filme com múltiplos olhares, mas também um sentido restrito, com a inserção de características da visualidade caleidoscópica na materialidade do filme.
Nesse sentido, poderíamos ver no filme diversos planos, cenas ou sequências que materializam a visão caleidoscópica. Vamos observar mais detidamente a cena chamada de “O coração da ocupação”. No primeiro plano da cena, o personagem que dirige o espetáculo assume uma posição de diretor e afirma: “tira a figura humana, tira o humanoide aí”. Em seguida, olhando para a câmera, o personagem assim a descreve: “Tu sabe que nós estamos numa contagem regressiva para o Dia D. Mas não é o dia D da Normandia, não. É o Dia D de Despejo. O vlog hoje é a batida do coração da ocupação. Mesmo sem tu saber, tá na tua bílis.”
Na cena, vemos uma contraluz colorida que deixa os corpos dos personagens dançantes na quase escuridão. Podemos reconhecê-los, mas aqui eles são vultos que dançam de acordo com a música, que se altera de plano a plano. Nesse sentido, há uma suspensão da identificação e da psicologia dos personagens. É como se o espectador estivesse vendo um caleidoscópio cujas imagens se alternam aos “saltos” de modo a produzir uma relação de “maravilhamento” com as formas, os ritmos, a beleza e a multiplicidade, desde o “coração” e a “bílis” que constituem a potência, o elemento fundante da ocupação.
Esta comunicação se desenvolve com influência da abordagem Teoria de Cineastas, que, dentre outras vertentes, critica e desloca conceitos enunciados por cineastas em relação ao pensamento visual de suas obras e do cinema em geral.
Bibliografia
- CAFFÉ, Carla. Era o hotel Cambridge: arquitetura, cinema e educação. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.
CAFFÉ, Eliane. Construindo o filme Era o hotel Cambridge. In: CAFFÉ, Carla. Era o hotel Cambridge: arquitetura, cinema e educação. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017. p. 234-245
CRARY, Jonathan. Técnicas do observador – Visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
ERA O HOTEL CAMBRIDGE. Direção: Eliane Caffé. Produção: Aurora filmes, 2016.
PENAFRIA, Manuela; LEITES, Bruno; BAGGIO, Eduardo; CARVALHO, Marcelo. Fazer a teoria do cinema a partir de cineastas – entrevista com Manuela Penafria. Entrevista concedida a Bruno Leites, Eduardo Baggio e Marcelo Carvalho. In: Intexto, n. 48, p. 6-21, jan./abr. 2020.