Ficha do Proponente
Proponente
- Rosane Kaminski (UFPR)
Minicurrículo
- Bolsista de Produtividade CNPq-PQ2. Professora Associada da UFPR. Pós-Doutora em Meios e Processos Audiovisuais (USP) e Doutora em História (UFPR), atua como docente no Programa de Pós-Graduação em História da UFPR, no Mestrado em Artes Visuais (PPGAV-Unespar) e no Mestrado em Cinema e Artes do Vídeo (CINEAV-UNESPAR). Autora de A poética da angústia: cinema e história em Sylvio Back (Intermeios,2021) e A formação de um cineasta: Sylvio Back na cena cultural de Curitiba nos anos 1960 (UFPR,2018).
Ficha do Trabalho
Título
- O FOTOFILME POVO DA LUA, POVO DE SANGUE (1983) E A “TRAGÉDIA YANOMAMI”
Seminário
- Cinema no Brasil: a história, a escrita da história e as estratégias de sobrevivência
Formato
- Presencial
Resumo
- Esta comunicação analisa o fotofilme Povo da lua, povo de sangue (1983), um curta-metragem de Marcelo Tassara que usa fotografias de Claudia Andujar sobre o povo yanomami. Problematiza-se o lugar social e a eficácia política do filme. Argumenta-se que ele carrega um “desejo de salvação” e, ao mesmo tempo, não esconde a relação entre a operação fotográfica e as violências coloniais, debatendo-se entre as suas potências estéticas e políticas, as suas responsabilidades e os seus próprios limites.
Resumo expandido
- Operando no terreno da ficção, a arte interfere na nossa capacidade de conhecer, julgar e interpretar o mundo, seja essa interferência sutil, seja ela declaradamente política. É a partir desse pressuposto que tratarei, nesta comunicação, do caso do fotofilme “Povo da lua, povo de sangue: Documento Yanomami/1972-1982”, realizado em 1983 por Marcello Tassara, a partir das fotografias e das pesquisas sonoras feitas por Claudia Andujar ao longo da década anterior, nos períodos em que ela conviveu com os indígenas amazônidas. Trata-se de um curta-metragem em 16 mm, com 27 minutos, cuja produção foi uma iniciativa da Comissão pela criação do Parque Yanomami (CCPY), ONG fundada em 1978 por Claudia Andujar, Carlo Zacquini, Bruce Albert e Alcida Ramos, entre outros, em meio às movimentações pela criação de uma reserva indígena, da qual o filme é uma espécie de manifesto. Após anos de luta, a homologação da Terra Indígena Yanomami ocorreu em 1992 (MORAES, 2023, p. 17). No entanto, isso não resolveu os graves problemas criados pela entrada do homem branco naquela região, nem eximiu as suas ambiguidades.
Em janeiro de 2023, a imprensa brasileira foi inundada por denúncias dos inúmeros casos de desnutrição grave, verminose, infecções respiratórias e malária que atingiam o povo yanomami. Em pouco tempo, a chamada “tragédia yanomami” (RAMOS, 2022), intensificada desde 2018, com o garimpo ilegal associado à pandemia do covid-19, ocupou também a mídia internacional. Fotografias do horror foram então publicadas, disseminadas nas redes sociais, ganhando contornos de um genocídio e marcando um fenômeno de efêmera visibilidade acerca de um problema que é, infelizmente, bem mais antigo e duradouro do que sua proeminência midiática naquele momento. Para além da espetacularização momentânea, observa-se, nesses anúncios da tragédia social, o lamento associado ao anseio de recuperar o que ainda for possível em meio ao desabamento de um povo. No entanto, mesmo essa vontade de ajudar, ou de reparar o que foi feito no passado e que se desdobra nos desastres de hoje, é sintoma de um abismo irreversível.
Da consciência desse abismo, junto à proposta de análise fílmica, as indagações norteadoras desta comunicação se agitam em torno de um paradoxo: afinal, qual o lugar e qual a eficácia do filme “Povo da lua, povo de sangue” diante dessa tragédia? A arte, num caso como esse, de íntima relação com os escombros e com o desejo de salvação, parece se debater entre as suas potências, as suas responsabilidades e os seus limites.
O abismo se reconfigura, nesse fotofilme, a partir de um vocabulário mítico, cuja narrativa parte da ideia de paraíso e se desdobra rumo à queda, sendo que o desejo de salvação é a única âncora possível. Tal desejo fundamentou a encomenda e a realização de “Povo da lua”, manifesto da luta pela demarcação da terra yanomami. Em sua elaboração, o cineasta, a fotógrafa, os consultores (antropólogos) e tantos outros profissionais participaram.
Não se pode negar que esse curta de Marcelo Tassara documenta, poetiza, reivindica e constrói uma memória para a vida e a morte yanomami. No entanto, ele não salva. O desabamento segue, se desdobra até nossos dias, se re-expõe constantemente aos nossos olhos, em outras fotografias e obras. A queda se consuma a cada nova imagem do horror, a cada nova denúncia, desfazendo-se na instabilidade. O fotofilme, por sua vez, apresenta uma forma estável. Ele sobrevive ao tempo enquanto matéria poética e, quatro décadas depois de sua realização, ainda sustenta os seus sentidos estéticos e políticos, mesmo que enfrente uma série de limites implicados nas tecnologias coloniais do ato fotográfico, dos efeitos de montagem, da estrutura narrativa vinculada ao vocabulário mítico cristão (do paraíso à queda), e da voz didática da narradora, que serão comentadas nesta proposta de análise.
Bibliografia
- ANDUJAR, C. A vulnerabilidade do ser. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
AZOULAY, A. Desaprendendo momentos decisivos. Revista Zum, n. 17, p. 116-37, abr. 2019.
ELIAS, É. Da fotografia ao cinema: os fotofilmes de Marcello Tassara. Studium, n. 29, 2009.
FOSTER, H. O retorno do real. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
MAUAD, A. M. Imagens possíveis: Fotografia e memória em Claudia Andujar. Revista Eco-Pós, v. 15, n. 1, p. 124-146, 2012.
MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MORAES, A. C. A. Sonhos, de Claudia Andujar: experimentalismo e cosmovisão yanomami. Tese de Doutorado em Artes Visuais, Unicamp, 2023.
RAMOS, A. R. A tragédia Yanomami. ABA, Informativo, n. 09, p. 17, 2022.
TASSARA, M. G. Povo da Lua, Povo do Sangue. Documento Yanomami / 1972-1982. Curta-metragem sonoro, não ficção, 16mm, cor, 27 min. São Paulo, Fitas Brasileiras e CCPY, 1983.
TELES, P. C. da Silva. Filmes de média-metragem (1960-1990) abandonados no tempo? Dissertação de Mestrado em Multimeios, Unicamp 2001.