Ficha do Proponente
Proponente
- Erika Savernini (UFJF)
Minicurrículo
- Erika Savernini é doutora em Artes-Cinema (EBA-UFMG), atual diretora da Faculdade de Comunicação Social da UFJF (2022-2026), coordenadora do proj. extensão Cineclube Lumière e cia, autora do livro “Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krysztof Kieslowski”, e editora do livro póstumo de Eduardo Leone, “Reflexões sobre a montagem cinematográfica” (ambos pela Ed. UFMG). Membro do grupo de pesquisa midia@rte – laboratório Multimídia (EBA-UFMG).
Ficha do Trabalho
Título
- Gêneros entrecruzados na insólita história de Bella Baxter
Seminário
- Estudos do insólito e do horror no audiovisual
Formato
- Presencial
Resumo
- Pobres criaturas é uma transposição da literatura para o cinema; o romance de Alasdair Gray, do qual o filme é adaptado, por sua vez, pode ser visto como uma atualização do romance gótico de ficção científica, Frankenstein. Propomos a análise de como a história de Bella Baxter atualiza o que seria a questão ética fundamental, em relação à Ciência Moderna, do romance de Mary Shelley, introduzindo questões contemporâneas (embora antigas na sociedade) que tornam Bella criadora e criatura.
Resumo expandido
- Pobres criaturas (Poor Things, EUA, 2023), dirigido por Yorgos Lanthimos, é uma transposição da literatura para o cinema que acompanha a história de Bella Baxter (Emma Stone). Bella é um experimento científico do Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), que é fascinado pela criatura insólita resultante: o crânio de uma suicida grávida recebe o cérebro do bebê que gestava. Bella não é nem mãe nem filha(o), constrói uma identidade própria. As sensações do corpo adulto fascinam a criança, embora dissonante de sua mente, que passa a explorar os prazeres do seu corpo, até que é despertada pela curiosidade em relação ao sexo por um bon vivant, que explicita suas intenções pouco honrosas em relação àquela mulher linda com mentalidade infantil. Desta forma, Bella empreende seu próprio experimento de se lançar pelo mundo e pelas novas experiências.
A história de Pobres Criaturas parece ser uma recriação de Frankenstein, de Mary Shelley, apontado por muitos como o primeiro romance de ficção científica e, certamente, um marco da literatura gótica. Essa referência vem do romance de Alasdair Gray, publicado em 1992, do qual o roteiro do filme foi transposto, mas com mudanças significativas em estrutura e mesmo em acontecimentos da trama, além de o filme ser uma experiência eminentemente cinematográfica (analisamos também a plástica do filme como uma rima da narrativa: diversas referências e inspirações fragmentadas compõem o universo fílmico).
Se Victor Frankenstein é um jovem audacioso e imprudente que, por isso, rompe a ética em seus experimentos; Dr. Godwin Baxter é um cientista “maluco” experiente, professor zombado pelos alunos, vítima ele mesmo dos experimentos do seu pai (é como se ele fosse, ao mesmo tempo, o monstro de Frankenstein e o criador de Bella). Há um salto na questão ética da construção de um ser/monstro pela costura de partes de corpos mortos para a criação de um ser da fusão de mãe e bebê (algo que “passa batido” na narrativa do filme é que, ao que parece, o bebê não estava morto quando seu cérebro é retirado para animar o corpo de sua mãe). A questão ética colocada por Mary Shelley é a da ciência moderna desafiando as leis naturais e o homem tomando para si o que é próprio de Deus (animar). Enquanto, em Pobres Criaturas, a ciência moderna já está estabelecida, seus feitos não são exatamente atos conflitantes com o divino, Dr. Godwin porta-se e se pensa como um cientista – embora, significativamente, Bella o chame God (um deus que não tem poder sobre sua criatura).
Esse é um aspecto fundamental de Pobres Criaturas, pensado como uma história na encruzilhada de dois gêneros (o horror e ficção especulativa), como Frankenstein: é próprio da literatura gótica uma atualização dos questionamentos e medos; assim como a ficção (científica) especulativa tem um lastro no atual para projetar uma possibilidade. Segundo Julio Jeha, os medos são diversos em relação ao seu contexto de produção e de recepção (varia conforme a época, a cultura, o imaginário…). Por isso, é possível apontar atualizações dos elementos narrativos e nos questionamentos suscitados por Pobres Criaturas, ainda que, num primeiro momento, possa parecer uma mera releitura de Frankenstein. Introduzindo, inclusive, uma questão (central) de gênero: sendo a mulher a responsável pela geração da vida, não se afasta da questão da ficção científica (do cérebro de um bebê transposto para um corpo adulto) a criatura tornar-se uma mulher (na passagem de Frankenstein para Pobres Criaturas). Uma mulher que, por ser criada por um cientista, sem imposição de moralidade, encontra espaço para ganhar autonomia, para o desenvolvimento do pensamento crítico, para experimentar o mundo mesmo ciente dos riscos e das “más intenções” do homem com quem se aventura. Ainda que haja tentativas de enquadrá-la no bom comportamento que uma mulher da sociedade deve ter, Bella é um ser pleno (criadora – gestora do bebê que lhe “doa” o cérebro – e criatura – experimento do Dr. Godwin).
Bibliografia
- GRAY, Alasdair. Poor things. London: Blomsbury Press, 1992.
JEHA, Julio Cesar. As ligações criminais do Gótico. SOLETRAS, n. 27, p. 1., jan.-jun. 2014.
JEHA, Julio; NASCIMENTO, Lyslei (orgs). Da Fabricação de Monstros. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
SAVERNINI, Erika. Cinema utópico: a construção de um novo homem e um novo mundo. Tese (Doutorado em Artes – Cinema), Escola de Belas Artes, UFJF, 2011.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.