Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Nicholas Andueza (PUC-Rio)

Minicurrículo

    Nicholas Andueza é professor de Cinema e Audiovisual na PUC-Rio, coordenador da Central Técnica da Cinemateca MAM-Rio e editor-assistente da Revista Eco-Pós (UFRJ). É membro da ABPA e membro correspondente do PACC (FIAF). Doutor em comunicação pela UFRJ e doutor em história pela Paris 1 – Panthéon Sorbonne, tese premiada pela SOCINE (2023).

Ficha do Trabalho

Título

    Notas sobre a memória, o cinema e o sol: às crianças que viram

Formato

    Presencial

Resumo

    Se o lugar das crianças na história costuma ser, nos cânones ocidentais, periférico e subalterno, “Viagem ao Sol”,de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias propõe uma inversão. Ao retomar arquivos da migração de crianças pobres de uma Áustria destruída pela Segunda Guerra rumo ao Portugal de Salazar, o filme retrabalha a experiência infantil da história. O teatro social e político dos adultos, a história por eles produzida, tudo isso cai por terra. Reinventa-se a cena histórica.

Resumo expandido

    Diante de filmes familiares portugueses inéditos dos anos 40 e 50 retomados em “Viagem ao Sol” (2021), de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias, nos confrontamos com um evento singular do pós-guerra: a migração de crianças austríacas para Portugal, por meio de um programa capitaneado pela Igreja Católica e propagandeado pelo regime salazarista. Por estarem vulnerabilizadas devido à Segunda Guerra Mundial, essas crianças seriam deslocadas das zonas frias rumo ao clima português, considerado mais ameno e ensolarado – sendo adotadas temporariamente por famílias abastadas. As famílias austríacas mais pauperizadas também viram no programa a oportunidade de reduzir os custos de sustento, enviando os seus mais novos ao Sol ibérico. Assim, “Viagem ao Sol” formula uma obra de deslocamentos, a migração das crianças, de suas imagens e da próprio olhar sobre a história. Faz-se aqui uma leitura a “contrapelo”, como na célebre sugestão de Walter Benjamin (2012): sob a ótica da infância – elemento raro, periférico, subalterno nos arquivos históricos. Esta proposta de comunicação se interessa, portanto, pelos procedimentos audiovisuais utilizados no filme para se construir essa busca pela experiência infantil da história, comumente relegada ao segundo plano nas abordagens ocidentais canônicas.

    A começar já pela primeira parte, onde não são as imagens familiares, mas as imagens de atualidades que dominam. Há ali um trabalho de encontrar crianças nas filmagens de escombros de bombardeios, de sugeri-las, já que, na economia das representações, os pequenos são tradicionalmente desconsiderados enquanto sujeitos históricos. Achar as crianças, aqui, é levantar cinematograficamente os escombros (da guerra, de suas imagens e da própria historiografia ocidental) e reconstruir mundos inteiros pela via da montagem.

    Quando chegamos aos materiais familiares portugueses, acompanhados da voz em off daqueles que um dia foram aquelas crianças filmadas, as tensões entre os sorrisos nas imagens e as estranhezas nas falas implodem a ordem familiar. Crianças outrora pobres e famintas na Áustria de repente se tornam filhos de burgueses e aristocratas portugueses; tratadas muitas vezes com esmero, são no entanto objetificadas e praticamente mercantilizadas na escolha para adoção (os loiros de olhos claros eram os preferidos); saídos dos escombros de uma sociedade alfabetizada, chegam a um território aparentemente pacífico (salazarista) mas cheio de adultos analfabetos. O olhar infantil expõe o teatro social e político dos adultos, as entranhas da história, gerando outra experiência historiográfica. Com ela, vem também uma nova possibilidade de historiografia. Uma que opera por “memórias fracas”, não tanto pelas “fortes”, como coloca a própria Susana de Sousa Dias (Murari & Andueza, 2023).

    O filme abre caminhos para reflexões diversas, entre as quais a das relações entre infância e história (Agamben, 2005) e também a da própria função tradicional da representação histórica (Riccœur, 2000). Achar as crianças para encontrar seus olhares – eis o ponto. Desmoronar os vários salazarismos vigentes para recriar a cena histórica.

Bibliografia

    AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
    BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2012.
    MURARI, Lucas e ANDUEZA, Nicholas. “A retomada das imagens contra o perigo iminente: entrevista com Susana de Sousa Dias”, Revista ECO-Pós, v. 26, n. 2, p.352-372, 2023.
    PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
    RICŒUR, Paul. L’histoire, la mémoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000.