Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Felipe Ferro Rodrigues (USP)

Minicurrículo

    Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, mestre e bacharel pela mesma instituição, editor de som e técnico em som direto. Dedica-se à pesquisa do som e da voz no cinema e na televisão desde a graduação, com foco especial nas articulações entre voz e corpo e nos melodramas audiovisuais. Atualmente concentra-se no estudo das relações den ventriloquia no cinema.

Ficha do Trabalho

Título

    Vox alieni: ventriloquia e possessão em O exorcista e Ondas do destino

Seminário

    Estilo e som no audiovisual

Formato

    Presencial

Resumo

    A partir das protagonistas de O exorcista (1973) e de Ondas do destino (1996), duas jovens que têm seus corpos utilizados como veículo de vozes sobrenaturais, exploramos a ideia de boneco — a posição passiva nas relações de ventriloquia — a fim de explicitar as relações de poder que a regem: o boneco é um vulnerável por excelência e a voz que nele se manifesta é sintoma último do controle que exerce sobre seu corpo, escancarando neste processo questões de gênero e de sexualidade.

Resumo expandido

    A voz é, simultaneamente, um dos elementos mais óbvios e mais misteriosos da banda sonora. Há quase 100 anos, o diálogo é algo tão dado, tão esperado, que não raro perdemos de vista as possibilidades de manipulação das articulações entre voz e corpo-fonte que o cinema oferece. Estudiosos do som e da voz, como Rick Altman (1980), Michel Chion (1999) e Steven Connor (2000), notam, com maior ou menor ênfase, o caráter ventriloquial do cinema enquanto mídia, e isso se evidencia particularmente em gêneros onde a voz carrega significados que extrapolam os confins das palavras do texto, como o horror e o melodrama, classificados por Linda Williams (1991) como body genres.
    Em O exorcista (The Exorcist), 1973, de William Friedkin, e Ondas do destino (Breaking the Waves), 1996, de Lars von Trier, duas mulheres têm seus corpos usados por vozes sobrenaturais — Regan MacNeil pelo demônio Pazuzu e Bess McNeill pelo Deus judaico-cristão. Nenhuma das duas se voluntaria para isso, nem compreende com exatidão como isso acontece. Elas são escolhidas, por alguma razão, para dar corpo a vozes sobre-humanas, fantoches de entidades sobre as quais elas não exercem qualquer poder, e por essa razão as denomino bonecos, o polo passivo da relação ventriloquial. 
    Em Ondas do destino, nunca conseguimos discernir com certeza se o que ouvimos é não mais do que um diálogo da protagonista consigo mesma, uma imitação quase pueril do que uma jovem criada em uma comunidade profundamente religiosa imagina ser a voz do Criador, ou se de fato Deus fala através do corpo daquela moça. No contexto religioso e espiritual, a manifestação de vozes nos corpos daqueles que crêem não é incomum, assim como não é inusual a existência de vozes etéreas, sem corpo. Podemos encontrá-las sem dificuldade nas próprias escrituras que judeus e cristãos consideram sagradas.
    Em várias tradições religiosas, espíritos malignos dificilmente se materializam, mas aparecem como vozes que momentaneamente tomam posse de um corpo — tropo amplamente utilizado pelo cinema de horror, dentro do qual O exorcista é um exemplo paradigmático. Em muitas circunstâncias, qualquer voz descorporificada recebe quase imediatamente status sobrenatural. Com frequência, a essa voz urge um corpo, um veículo que lhe possibilite suprir a necessidade premente de falar, uma vez que espíritos geralmente sinalizam sua presença através do discurso (LEAVITT, 1999, p. 202): são ventriloquistas à procura de um marionete. 
    Os corpos mais sujeitos a assumirem a posição de bonecos são os das crianças e, especialmente, os das mulheres (ROWAN, 2021). Tanto Regan quanto Bess — que, curiosamente, compartilham o sobrenome — são mulheres possuídas por entidades masculinas. Embora não se apresentem em forma física, ambos violam os corpos de seus receptáculos, vulneráveis por excelência, e usurpam sua autonomia. Esse conflito de gênero, que perpassa o sensual e o erótico e faz do sexo caminho inevitável para ambas, se reflete mais claramente na voz: a voz infantil de Regan dá lugar à voz grave, gutural e obscena de Pazuzu, e Deus, quando fala através de Bess, emposta e engrossa sua voz, revestindo-a de aparente autoridade. 
    Essa relação hierárquica entre ventríloquo-etéreo-masculino e boneco-material-femino fica ainda um pouco mais complicada quando expandimos nosso horizonte de análise para além da diegese fílmica. Dentro do universo ficcional onde vivem Bess e Regan, é possível afirmar que essas vozes pertencem a Deus e ao diabo, elas simplesmente se manifestam nas moças. No entanto, é Emily Watson, a intérprete de Bess, quem vocaliza a voz de Deus; é de Mercedes McCambridge a voz do demônio Pazuzu, que substitui, via tecnologia, a voz de Linda Blair, atriz mirim que interpreta Regan. As vozes de ambas as entidades masculinas são, em última instância, femininas. É na voz como locus da identidade e do erótico — e na subversão das expectativas que temos a respeito dela (SILVERMAN, 1997, p. 48) — que se escancaram esses conflitos.

Bibliografia

    ALTMAN, Rick. Moving Lips: Cinema as Ventriloquism. Yale French Studies, no. 60, Cinema/Sound, p. 67–79, 1980. 
    CHION, Michel. The Voice in Cinema. Nova York: Columbia University Press, 1999.
    CONNOR, Steven. Dumbstruck: A Cultural History of Ventriloquism. Oxford: Oxford University Press, 2000. 
    LEAVITT, John. Prophecy. Journal of Linguistic Anthropology, vol. 9, no. 1/2, p. 201–204, 1999. 
    ROWAN, Kirsty. How Demons Speak: The Voice of Demonic Possession. In: BLYTH, Caroline (org.). Spirit Possession and Communication in Religious and Cultural Contexts. Nova York: Routledge, 2021. 
    SILVERMAN, Kaja. The Acoustic Mirror: The Female Voice in Psychoanalysis and Cinema. Bloomington: Indiana University Press, 1988. 
    WILLIAMS, Linda. Film Bodies: Gender, Genre, and Excess. Film Quarterly, vol. 44, no. 4, p. 2–13, 1991.