Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Denise Costa Lopes (PUC-Rio)

Minicurrículo

    Doutora em Artes Visuais pela EBA/UFRJ, com bolsa CAPES na Université Lumière Lyon 2. Professora do curso de Cinema da PUC-Rio desde 2010, e de cursos livres independentes de Cinema, Pintura e Arte Contemporânea desde 2019. Leciona em cursos de cinema desde 2005, com passagens pela UFF, UNESA e ECDR. Mestre pelo Departamento de Cinema da UFF. Bacharel em Comunicação pela ECO/UFRJ. Sua área de interesse se encontra na confluência do cinema com as outras artes, em especial com a pintura.

Ficha do Trabalho

Título

    Redenção:experimentar para lembrar, se opor e resistir ao colonialismo

Seminário

    Cinema experimental: histórias, teorias e poéticas

Formato

    Presencial

Resumo

    Em 1911, Redenção de Cã (Modesto Brocos) foi exibido no I Congresso Universal das Raças, em Londres, para ilustrar o ideal de branqueamento da população. Em novembro, 112 anos depois, o quadro foi virtualmente queimado na instalação Redenção (Mariana Luiza), no IDFA. Veremos, a partir da experimentação com elementos pictóricos e fílmicos projetados na água, como a obra expandida evoca ancestralidades, questiona o mito narcísico e promove deslocamentos como forma de se opor ao colonialismo.

Resumo expandido

    Em 1911, o quadro Redenção de Cã (1895), de Modesto Brocos, viajou do Brasil para Londres para ser exibido no I Congresso Universal das Raças. Motivo? Exemplificar o ideal de branqueamento da população em voga no Brasil entre 1850 e 1945. Em novembro, 112 anos depois, o mesmo quadro foi virtualmente queimado na videoinstalação Redenção, de Mariana Luiza, no IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdam), como uma potente reposta ao racismo, ao colonialismo e a todas as formas de apagamento de nossas raízes civilizatórias afro-indígenas que ainda hoje nos devastam.
    O trabalho expandido de Mariana propõe uma experiência audiovisual experimental a partir de elementos pictóricos e fílmicos dissociados de seus habitats naturais. Articula assim um conjunto de relações plásticas transversais, envolvendo pintura, fotografia, desenho, escultura, indumentárias, colagens de textos e de falas sonoras, e a arquitetura local de exibição, promovendo deslocamentos temporais e espaciais e a imersão de um participador envolvido corporalmente no processo de ‘leitura’ e ‘montagem’ das imagens e sons.
    A obra é dividida em três atos labirínticos. No primeiro, Redenção de Cã, a pintura é projetada e decupada por meio de enquadramentos alternados que explicitam a dinâmica de conexões das linhas imaginárias da composição. Seguidas pela câmera, elas nos deixam ‘constatar’ o embranquecimento geracional, da avó preta e da mãe mestiça até o bebê branco, filho de um pai ibérico.
    No segundo, Um século, três gerações, o movimento eugenista ganha forma com a partilha de inúmeras imagens de arquivo em atravessamentos. Concursos de beleza eugênicos nos anos 1940-50, arquivos sonoros de rádio defendendo a superioridade branca, fotografias de imigrantes recém-chegados ao país para ‘embranquecer a nação’, artigos de jornais e propagandas eugênicas conclamando a imigração europeia, trechos de autores que flertaram com o tema da eugenia no Brasil, e da Constituição de 1934, que incentivava a educação racista, fazem parte da projeção, que forma um pequeno documentário assustador sobre o tema.
    Por último, N’kama mia ntangu (Instâncias do tempo), projeta um filme experimental curto numa superfície rasa de água no chão, evocando nossas ancestralidades e a força da cosmologia de raiz africana a partir de imagens oníricas e desconstruídas da natureza, dos bichos, de afrodescendentes e de rituais da cultura bantu-kongo. O mito de Narciso, base de ideologias que não consideram o outro, é questionado pelo dispositivo, apontando para a recusa do antropocentrismo e a necessidade de nos reconectarmos com a natureza em pé de igualdade.
    O espectador, que precisa se debruçar sobre as imagens para assisti-las e que pode interagir com elas mexendo na água e alterando suas feições, acaba projetado como reflexo em meio às imagens que ondulam, cintilam e se espelham também no teto da sala escura, duplicando e potencializando a experiência, que se engendra da complexidade do real, como no fundo de um espelho (Michaud). Encarar o outro plasmado no reflexo do seu próprio rosto e, ao contrário de Narciso, procurar empatia com esse diferente tangível, que presentifica mundos passados (Gumbrecht), a fim de construirmos alteridades capazes de se oporem ao etnocentrismo, parece ser o desejo de Redenção.
    Ao analisar o quadro de Brocos, o historiador Rafael Cardoso atenta para o fato de que “nem sempre uma obra engajada politicamente é inovadora em termos de linguagem, e vice-versa” (p.107). Mas Redenção não é só politicamente correta e importante para os dias de hoje, ela problematiza o estatuto da imagem em movimento e entrelaça recursos de linguagem que criam uma atmosfera de envolvimento sensorial capaz de beneficiar o engajamento daqueles que a percorrem, tornando-os por efeito coautores da obra e incendiários do quadro de 1895, ‘donos’ do discurso que ali se encerra. Racismo, eugenia e colonialismo parecem assim de alguma forma redimidos pelo experimentalismo que a obra opera.

Bibliografia

    Cardoso, R. A arte brasileira em 25 quadros: 1790-1930. Rio de Janeiro: Record, 2008
    Deleuze, G. A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005
    Dubois, P. Movimentos improváveis: O efeito cinema na arte contemporânea. Rio de Janeiro: CCBB, 2003
    Furtado, B & Dubois, P. (Orgs.) Pós-fotografia, pós-cinema: novas configurações das imagens. São Paulo: Ed. Sesc São Paulo, 2019
    Gumbrecht, H. U. Atmosfera, ambiência, stimmung: Sobre um potencial oculto da literatura. Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014
    _____. Produção de presença: O que o sentido não consegue transmitir. Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010
    Lacerda, J.B. Sur les métis au Brésil. Londres: Premier Congrès des Races, 26/29 Juillet, 1911. Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/35/1/Surlesmetis%20cdr.pdf
    Michaud, P.A. Filme: Por uma teoria expandida do cinema. Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014
    Schwarcz, L. M. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993