Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    ANTOINE NICOLAS GONOD D ARTEMARE (UFF)

Minicurrículo

    Antoine d’Artemare é cineasta e pesquisador. Atua como diretor de fotografia e colorista na área de audiovisual. É formado em Cinema pela La Fémis (2010) e possui mestrado em Comunicação e Cultura pela UFRJ (2020). É doutorando do programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF. Leciona as disciplinas de Fundamentos da Fotografia; Direção de Fotografia e Iluminação; e Correção de Cor e Finalização Audiovisual no curso de Cinema da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-RJ).

Ficha do Trabalho

Título

    Carpenter disse: “Haja luz!”, e ele viu que a luz era trevas

Seminário

    Estética e plasticidade da direção de fotografia

Formato

    Presencial

Resumo

    De que maneira a instrumentalização da luz e das trevas pela Igreja cristã pode influenciar, capturar e colonizar os imaginários luminosos concretizados pela direção de fotografia? Iremos analisar a direção de fotografia de O exorcista (1973) e de A Bruma Assassina (1980), em diálogo com o estudo de textos, conceitos e materialidades luminosas da Igreja, a fim de demonstrar como a proposta luminosa desses filmes vai ao encontro do imaginário cristão da luz ou, ainda, de encontro a ele.

Resumo expandido

    De que maneira a instrumentalização da luz e das trevas pela Igreja cristã pode influenciar, capturar e colonizar, ainda que de forma inconsciente, os imaginários luminosos concretizados pela direção de fotografia? E, por outro lado, de que modo a fotografia poderia contribuir para a imaginação de pontos de fuga capazes de descristianizar e descolonizar o pensamento da luz no cinema?
    Partiremos da constatação de que um expressivo número de filmes glorifica a luz e/ou demoniza a escuridão, estigmatizando-a como “trevas”. Um exemplo disso pode ser visto em Fausto (1926), numa cena do início do filme, em que um personagem diabólico abre suas asas para bloquear a luz do sol, mergulhando assim um vilarejo na escuridão — enquanto prenúncio da chegada da peste. Poderíamos destacar ainda como em The Lodger (1927) a morte chega através de um repentino apagão de luz, permitindo que um assassino em série ataque a irmã do protagonista. De modo parecido, em Nós (2019), a tensão é anunciada pela interrupção da luz, quando a casa de férias de uma família americana é invadida por seus “duplos”. Esses são apenas alguns de muitos exemplos que testemunham a existência de uma “gramática do claro e do escuro”, do preto e do branco, do dia e da noite, que associa massivamente a luz a aspectos positivos e a escuridão a aspectos negativos, como observa Revault (1991, p. 91).
    É claro, no entanto, que nem sempre existe um contraste maniqueísta pouco complexo entre luz e sombra. Nem no cinema expressionista, alerta Revault, encontra-se essa oposição de forma caricata. Em alguns desses filmes, há, pelo contrário, uma verdadeira ambiguidade que demonstra como a escuridão ou as trevas podem abarcar ainda uma dimensão sedutora, de atração, reconforto ou proteção; e como a luz pode ser, também, ameaçadora e terrífica (Revault, 1991, p. 92). A plena luminosidade da cena da tentativa de assassinato com um avião, em Intriga internacional (1959); o intenso clarão de luz branca que irradia o supermercado de Despertar dos Mortos (1978); e a ininterrupta luz solar da aldeia em Midsommar (2019) parecem ir ao encontro da ideia de que, como afirma a tradução do título de Midsommar para o português, “O Mal não Espera a Noite”. Ainda assim, as rupturas com o código dominante demonstram-se escassas.
    Ora, o maniqueísmo da luz assinalado é fruto de diversas operações das quais toma parte o trabalho de direção de fotografia. Partindo dessas constatações, queremos defender a hipótese de que a glorificação da luz/demonização das trevas em certos filmes seria não apenas a expressão, mas também o instrumento, de estratégias cristãs e coloniais de poder. Ou seja, queremos pensar de que modo a direção de fotografia pode tanto refletir quanto reforçar os valores cristãos da luz e da sombra presentes em determinados contextos históricos.
    Para isso, iremos analisar a fotografia de O exorcista (1973) e de A Bruma Assassina (1980), em diálogo com o estudo de textos, conceitos e materialidades luminosas da Igreja, a fim de demonstrar como os imaginários luminosos desses filmes vão ao encontro — ou de encontro ao, no caso de A Bruma Assassina — do imaginário cristão da luz. O estudo das “lanternas dos mortos”, construções luminosas da época romana encontradas em cemitérios, como analisado pela historiadora Cécile Treffort (2001), nos permitirá apreender alguns dos valores cristãos atribuídos recorrentemente à dualidade luz-sombra. Com base nisso, argumentaremos não somente que o imaginário luminoso de O exorcista (1973) é impregnado por esses valores, mas também que sua fotografia concretiza, de certa forma, algumas das estratégias afetivas e sensoriais teorizadas pela doutrina da “economia cristã” (Agamben, 2016; Mondzain, 2013).
    Através dessa análise, queremos, portanto, desnaturalizar nossa relação com a luz no cinema, reconhecendo-a como um efeito e um instrumento de relações cristãs de poder nos contextos das quais essas luzes emergem e para os quais contribuem.

Bibliografia

    AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? & O amigo. Chapecó: Argos, 2016.
    FOUCAULT, Michel. Méthode. In: Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Éditions Gallimard, 1976. p. 121–135.
    KITTLER, Friedrich. Médias optiques: cours berlinois 1999. Paris: L´Harmattan, 2015.
    MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, economia. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2013.
    REVAULT D’ALLONNES, Fabrice. La lumière au cinéma. Paris: Éditions Cahiers du Cinéma, 1991.
    TREFFORT, Cécile. Les lanternes des morts: une lumière protectrice?. Cahiers de recherches médévales et humanistes, [s. l.], v. 8, n. La protection spirituelle au Moyen Âge, 2001. Disponível em: https://journals.openedition.org/crm/393. Acesso em: 29 jan. 2020.