Ficha do Proponente
Proponente
- Ramayana Lira de Sousa (UNISUL)
Minicurrículo
- Ramayana Lira de Sousa é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da UniSul e pesquisadora do Instituo Ânima. Seus interesses de pesquisa giram em torno de perspectivas feministas e queer/cuir no campo do cinema e da literatura. É também curadora e júri em mostras e festivais de cinema.
Coautor
- Alessandra Soares Brandão (UFSC)
Ficha do Trabalho
Título
- Des/col(oniz)ando o velcro: modo de ver o cinema
Seminário
- Tenda Cuir
Formato
- Presencial
Resumo
- O objetivo é aprofundar uma proposição metodológica que chamamos de des/col(oniz)ando o velcro. Como o pensamos, o velcro é um modo de pesquisa, curadoria e crítica. Um pensamento, uma produção, uma crítica que rala. No movimento do velcro, um filme ativa o outro; é uma forma de ativar o inventário, já que a história do cinema tem sempre sido contada não apenas através de indivíduos heróicos, mas de filmes heróicos, únicos. O velcro é nossa ficção metodológica, um truque. Um truck. Um caminhão.
Resumo expandido
- O objetivo desta apresentação é aprofundar uma proposição metodológica que chamamos de des/col(oniz)ando o velcro. O jogo de palavras aqui permite uma série de inflexões. A começar pelo desvio semântico da palavra velcro, apropriação vernacular feita pela experiência lésbica para designar a relação sexual, um sentido que traz à tona a relação entre corpos, trocas afetivas e o movimento do atrito. O velcro, como o entendemos, diz respeito ao deslocamento, ao desencaixe das coisas. A expressão desencaixar é rica neste contexto porque ela remete exatamente ao trabalho de não mais fazer caber nas caixas, nas caixinhas, nos caixotes. Algo não encaixa bem e, então, desliza e, ao deslizar, produz atrito. Recusar o encaixe, o encaixotamento. Amar o velcro, que fecha e abre, que cola e descola/desloca, que, por vocação, une sem grudar. A existência lésbica e cuir é todo um trabalho de desencaixe. Corpas desencaixadas das estruturas heterocispatriarcais, narrativas, desencaixadas das expectativas de um mundo que só sabe reproduzir a si mesmo. Colam como velcro nas estruturas quando necessário, mas como velcro, desencaixam quando possível. Uma forma ao mesmo tempo tática e estratégica de se mover pelos espaços institucionais, contrabandeando imagens e histórias, autora/es em contato e atrito, fricções e ficções. Um movimento que desorganiza os corpos.
Com isso, também buscamos problematizar o princípio da cisgeneridade que sustenta a noção do velcro e, no lugar da reafirmação de uma fantasia de coerência entre corpo, gênero e sexualidade, propomos valorizar o movimento, o deslize, a fricção. Não descuidamos das origens do termo, de sua história e sua política. Mas procuramos escorregar em direção a uma ampliação desse movimento, onde o foco não é mais apenas uma configuração corporal específica, mas uma gama de possibilidades orgânicas e inorgânicas.
Quando pensado como uma metodologia de aproximação ao cinema, o velcro não se trata exatamente nem de uma dialética nem de uma constelação, pois leva em consideração, já de partida, a intervenção da lesbiandade como critério aglutinador. O velcro é um modo de encontro com os filmes que pressupõe um processo de justaposição que demanda o contato, a fricção, o deslize (como deslizamento e como erro), um roçar, uma ralação. Ao admitir a existência lésbica como fundamento, o velcro se aproxima de outras formas de espectatorialidade, como a retroespectatorialidade. Para Patricia White, a retroespectatorialidade é uma espécie de recepção cinematográfica transformada por experiências inconscientes e conscientes de visualizações passadas. White diz que “toda espectatorialidade, na medida em que engaja fantasia subjetivas, revisa traços e experiências de memória, algumas das quais são memórias e experiências de outros filmes” (White, 1999, p. 197)
Mas o velcro é mais do que uma descrição de um certo registro de espectatorialidade. Como o pensamos, o velcro é o modo de pesquisa, curadoria e crítica. Um pensamento, uma produção, uma crítica que rala. Um conceito que rala. Uma ralação, contato e trabalho, esforço não apenas intelectual, mas físico também, um conceito “suado” como diz Sara Ahmed (2022). A ralação, o gesto, a cola, são processos materiais, implicam um desvio em direção ao corpo e a um desafio ao ocularcentrismo. De partida, só por isso, o velcro já é lésbico-feminista. O velcro é, também, do campo das sensações: quando os filmes se encontram, que ruídos, que sensações emergem?
Por fim, argumentamos pela relevância do velcro. Por que o velcro? Porque os arquivos e seus arcontes são cruéis. No movimento do velcro, um filme ativa o outro; é uma forma de ativar o inventário, já que a história do cinema tem sempre sido contada não apenas através de indivíduos heróicos, mas de filmes heróicos, únicos. Propomos o velcro como maneira de desviar dessa trajetória, dessa jornada do(s) herói(s). O velcro é nossa ficção metodológica, um truque. Um truck, o caminhão.
Bibliografia
- AHMED, Sara. O feminismo lésbico. In: Viver uma vida feminista. São Paulo: Ubu, 2022.
ANZALDÚA, Glória. Borderlands/La frontera. Aunt Lute, 2007.
BRANDÃO, Alessandra; SOUSA, Ramayana Lira de. A in/visibilidade lésbica no cinema. In: HOLANDA, Karla (org.). Mulheres de Cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.
CVETKOVICH, Anne. An archive of feelings: trauma, Sexuality, and Lesbian Public Cultures. Durham: Duke UP, 2003.
VILLAREJO, Amy. Lesbian rule: cultural criticism and the value of desire. Durham; Londres: Duke University Press, 2003.
SOUSA, R. L. de; BRANDÃO, A. S. Inventário de uma infância sapatão em um mundo de imagens. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, [S.L.], v. 3, n. 9, p. 121-137, 31 ago. 2020.
WHITE, Patricia. Uninvited: Classical Hollywood Cinema and Lesbian Representability. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1999.