Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Milene Migliano Gonzaga (ESPM/UFRB/CLACSO)

Minicurrículo

    Professora e pesquisadora em culturas urbanas, cinema e audiovisual, internet, plataformas e experiências estéticas e políticas da contemporaneidade, doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA, mestre em Comunicação e Sociabildade Contemporânea pela UFMG, integra a Associação Filmes de Quintal na qual compõem o forumdoc.bh – festival do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte desde 2003. Integra o Juvenália/ESPM-SP, o GEEECA/UFRB e a CLACSO, no eixo de Infâncias e Juventudes.

Ficha do Trabalho

Título

    Neirud e a narrativa delincuir: fragmentos em liminaridades estéticas

Seminário

    Tenda Cuir

Formato

    Presencial

Resumo

    Motivada pelo risco que o filme Neirud, de Fernanda Faya, 2023, assume e coloca todas as pessoas que o assistem, a correr, decido escrever esta proposição. Em dez minutos de filme, Neirud e toda a complexidade da história de sua vida é pincelada com fragmentos narrativos cinematográficos em diversos formatos: super 8, fotografia, desenho, chamadas telefônicas, câmera digital. A saída de seu local de origem, a vida no circo e passagens misteriosas entre exploração infantil e o alter ego de Mulher

Resumo expandido

    A perspectiva das liminaridades (ROSA, 2016) contempla um entendimento de que, em uma zona de contato entre duas ou mais condições, há uma situação propícia para a criação do inesperado. Tal originalidade é devedora da situação indiscernível dessa zona do entre que pode ser de passagem (BENJAMIN, 2009), ou pode se configurar como uma zona de detenção (ARANTES, 2000) da condição liminar. Neirud é uma narrativa audiovisual que se faz em liminaridades. Entre um filme de família, um documentário, um filme de busca (LINS; MESQUITA, 2007), um filme de montagem e um acerto de contas (HARTMAN, 2022) com a invisibilidade e desaparecimento de toda a história e memória de Élida Neirud dos Santos, a obra é tocante para as audiências, para a crítica e para a historiografia audiovisual, ao menos, brasileira.
    Filme de família porque Neirud era tia de Fefa, a primeira imagem do filme são as duas em cena, no aniversário de um ano da cineasta. Tia Neirud acompanhava a vovó Nely, uma mulher cigana, empresária, diretora artística de um circo, onde ambas se conheceram. Entre as imagens gravadas nesta câmera de vídeo caseira, a cineasta nos revela em uma narração que perdurará o filme inteiro, o passado da família, sua ascendência paterna cigana, a ascendência materna judaica e a presença de Tia Neirud em toda a sua infância e juventude. A proximidade da câmera de família ultrapassa as intimidades de inúmeras mulheres sem espetacularizá-las; perpassa os fragmentos audiovisuais, sejam gravados para compor a narrativa do documentário, sejam de arquivo, refazendo Neirud, mas também o Brasil, o circo em reinvenção e as lutas de emancipação de mulheres.
    A busca do filme é por imagens de Tia Neirud em sua performance artística circense, já que nada do que poderia ter havido restou entre as caixas da avó que seu pai guarda. Nesta insistência que prende a atenção da audiência que anseia por encontrar com a Mulher Gorila – que desafiava homens para luta livre em cada cidade que chegava – Fefa vai descobrindo histórias e laços familiares que ainda não lhe haviam sido revelados, como a relação amorosa que Neirud e Nely viveram durante anos: os primeiros com Rebeca, a treinadora das mulheres da luta livre do circo, e depois apenas as duas, quando fogem do circo e passam anos na estrada. A luta livre de mulheres era proibida, o amor entre mulheres era proibido (SOUSA; BRANDÃO, 2020). As fugas de Neirud, só ou acompanhada, inscrevem uma cosmopoética da fuga (BONA, 2020), existência possível para os corpos negros em territórios de diáspora. Nesta dinâmica do embate, nesta coreografia arte que “escapava da captura” (HARTMAN, 2022) reconhecemos a potência delincuir em sua trajetória.
    Delincuir é um entendimento sobre a potência da corporalidade de personagens de filmes que produzem transformação de suas realidades a partir da sua condição delinquente, no sentido de confrontar as leis, desde seus corpos cuirs, no sentido de dissidência dos padrões heteronormativos e de enfrentamento à colonialidade. Para ser uma personagem delincuir, é preciso recriar temporalidades narrativas que contaminam e inspiram audiências. Neirud, apresentada cuidadosamente por Fefa, se desvela a cada nova lente de aumento aplicada aos fragmentos que vão chegando na mão da diretora, vai tendo seus gestos relidos com a potência transformadora dos contextos sociais e culturais no qual sua pessoa estava inscrita, uma mulher, negra, nascida nos anos 30.
    Neirud que foge é Neirud que sabe o que quer, porque quer mais do que está programado para seu corpo negro no interior do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no primeiro circo com o qual parte para a vida na estrada, quando pede para seguir com o circo de mulheres de Nely, quando com foge de sua condição como atração principal com a mulher que ama, quando ao entrar na última comunidade da qual fez parte, queima todos os registros de seu passado para somente ser irmã Élida. Neirud é também um filme de amor entre mulheres, um filme sapatão.

Bibliografia

    ARANTES, Antônio. A guerra dos lugares: mapeando zonas de turbulência. Arantes, A. Paisagens Paulistanas: transformações do espaço público. Campinas: Editora Unicamp, 2000.

    BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
    BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis, SC: Cultura e Barbárie, 2020.

    HARTMAN, Saidiya. Vidas Rebeldes, belos experimentos. São Paulo: Editora Fósforo, 2022.

    LINS, Consuelo; MESQUITA, Claudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2008.

    ROSA, Thaís et alli. Grupo de Estudos Liminaridades. Caderno de Agenciamentos Corpocidade 5. Salvador: Edufba, 2016.

    SOUSA, Ramayana Lira. de; BRANDÃO, Alessandra Soares . Inventário de uma infância sapatão em um mundo de imagens. Rebeh – Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 02, n. 03, p. 121-137, 2020.