Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Roberta Veiga (UFMG)

Minicurrículo

    Roberta Veiga é professora do Depto. de Comunicação e do PPGCOM/UFMG; coordenadora do grupo Poéticas Femininas, Políticas Feministas (UFMG-Cnpq); integrante do comitê científico da SOCINE; consultora científica da FAPESP; e bolsista do CNPq com o projeto Por teorias e métodos feministas no estudo do cinema: entre formas, narrativas e corpos de mulheres.

Ficha do Trabalho

Título

    Montar um arquivo coutiniano para nomear formas históricas de maternar

Mesa

    Retomar e remontar: arquivos de maternidade na obra de Coutinho

Formato

    Presencial

Resumo

    A partir do acervo maior da filmografia de Eduardo Coutinho, propomos retomar personagens que manifestam a experiência materna em seus gestos e palavras, de modo a compor um arquivo de mulheres-mães. Refazenda da história do cinema e das mulheres, a lida das performances como arquivo busca pontuar os moldes e as singularidades, as diferenças e identificações, não só montando uma galeria de formas históricas determinantes na constituição da maternidade, mas as nomeando.

Resumo expandido

    Entre tantos campos problemáticos do documentário de Eduardo Coutinho e do debate feminista, através da constituição de um arquivo das performances de mulheres-mães, vamos abordar, nessa apresentação, a conformação da maternidade por dispositivos de controle patriarcais-capitalistas e colonialistas versus a complexidade das múltiplas e contingenciais formas de maternagem que desse amoldamento transbordam ou a ele resistem. A ideia é ainda discutir a relação entre a performance e o arquivo como forma de nomear os problemas da função materna.
    Se para Benjamin e Didi-Huberman, a montagem de arquivos, de modo a retrabalhar os vestígios da história, é uma forma contra hegemônica de dar lugar aos vencidos ou às frágeis sobrevivências; feministas, como Carole Pateman e bell hooks, ensinam que nomear é o único meio de identificar as múltiplas facetas da opressão às mulheres. Para Pateman, “se o problema não for nomeado, o patriarcado poderá muito bem ser habilmente jogado na obscuridade, por debaixo das categorias convencionais da análise política” (1993: 39). Tais categorias, propositalmente cegas aos problemas de gênero, devem se referir especificamente “à sujeição das mulheres” e singularizar “a forma de direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens” (Idem). Nomear violências de gênero, o estupro, o feminicídio, é um processo não só para o reconhecimento desses crimes, mas para o combate de opressões que se estendem à maternidade.
    Construir um arquivo dos filmes de Coutinho que uma vez trouxeram sobrevivências femininas vulnerabilizadas por questões históricas, sociais e econômicas, não é dar nome a perpetradores e a sobreviventes, mas aos mecanismos e processos de dominação que geraram ambos. Se não é possível lutar contra o que não se vê, tornar arquivo e montá-lo numa galeria, é nomear o que se vê. É torná-lo visível à consciência. Na base dessa construção arquivística, partimos de uma situação histórica dialética que ilumina pontualmente a relação de compulsoriedade das mulheres com a maternidade e também os arranjos que lançam mão para sustentá-la ou a ela resistir.
    De um lado a maternidade indesejável e de outro a maternidade inquestionável. A princípio elas se excluem, mas de perto se aproximam e até se misturam. A indesejável diz respeito a experiências comuns entre as mulheres que engravidam sem querer e são impedidas de fazer o aborto por serem proibidas (como no Brasil), por temerem (punições morais, arrependimento, culpa) ou por não terem condições. Ela se confunde com a maternidade que se aceita passivamente. Não desejar pode ser tanto assumir que não quer ser mãe, seja por medo de uma maternidade solo ou por ter que abandonar os sonhos da juventude e sacrificar a vida pessoal por uma vida dedicada ao outro, quanto aceitar a gravidez e temer manifestar a frustração. Passivamente ou assumidamente, tais exemplares da condição materna figuram em nosso arquivo de modo tenso mesmo quando são apaziguadas pelo tempo. Lembramos a princípio de Alessandra e Cristina, de Edifício Master; e de Aleta e Gisele de Jogo de Cena.
    Do outro lado, o da maternidade inquestionável, ser mãe constitui um desígnio divino e um fortalecimento do poder feminino, lugar mesmo do sacrifício e de amor incondicional. Há aquelas que têm inúmeros filhos, como Jurema, de Boca de Lixo: elas vão bater no peito e se auto exaltar por isso. Há outras que dedicam suas vidas aos filhos de modo a abdicarem de si mesmas, como Claudiléa e Nilza, de Jogo de Cena.
    Parar de viver pelo filho ou não parar de ter filhos para ser sempre mãe, são faces da mesma moeda. De um pólo a outro, ao trazer concepções singulares de ser mãe, mas também os modos de negociá-las no mundo, o arquivo nos permite lidar não apenas com os dispositivos biopolíticos de determinação da reprodução social, mas também com a complexidade que faz com que cada uma dessas experiências seja matizada em sua conjuntura.

Bibliografia

    Badinter, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.
    Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante. 2017.
    Pateman, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1993.
    HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, v. 23 n. 3, p. 12-33, 2020.

    hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 3ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
    Saffioti, Heleieth (2019). Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade. In H.B. Hollanda (org.), Pensamento feminista brasileiro – formação e contexto. RJ: Bazar do Tempo.
    TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo. Horizonte: Editora UFMG, 2013.
    Segato, Rita (2021). Crítica da colonialidade em oito ensaios – e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.