Ficha do Proponente
Proponente
- Luiz Fernando Coutinho de Oliveira (UFMG)
Minicurrículo
- Doutorando em Comunicação Social no PPGCOM-UFMG. Edita a Revista Madonna e colabora com a LIMITE – Revista de Ensaios e Crítica de Arte e a Revista Descompasso. Também atua como tradutor para o Vestido sem costura – blog de cinema.
Ficha do Trabalho
Título
- O “complexo de Rebecca” no cinema
Formato
- Presencial
Resumo
- O “complexo de Rebecca”, tal como busco defini-lo, consiste em um conceito operatório que lança luz sobre o conflito figurativo estabelecido entre um filme e sua matriz, ou seja, entre uma obra que “veio depois” e outra que a antecede e influencia. Baseado nas obras de Alfred Hitchcock e Daphne du Maurier, o conceito inspira a refletir sobre o confronto agonístico que um filme tardio trava com seu precursor, do qual ele oferece uma interpretação distorcida.
Resumo expandido
- Em sua análise de Rebecca, escrito por Daphne du Maurier, Nathalie Heinich (1998) identifica nele um equivalente romanesco do mito de Édipo, o qual nomeia “complexo de segunda”. A “segunda”, nesse caso, equivale à mulher que veio depois de uma “primeira”, ocupando um lugar secundário em uma escala de prioridade. Tanto no romance como no filme de Alfred Hitchcock que o adapta para as telas em 1940, a heroína anônima, após se casar com um homem viúvo, luta para se desvencilhar da sombra imponente de sua antecessora, chamada Rebecca. Vendo-se implicada em um confronto agonístico com aquela que veio antes, a protagonista enceta uma luta, no campo simbólico, pela conquista de uma identidade própria.
Inspirado na dinâmica dramática que estrutura tanto o filme quanto o romance, o “complexo de Rebecca”, tal como o proponho, lança luz sobre as relações ao mesmo tempo miméticas e apotropaicas que um filme estabelece com seu modelo cinematográfico. Por apotropaico entendo a postura de defesa que esse filme assume em relação à sua matriz fílmica, traduzido em operações formais que buscam atenuar sua influência. Se a protagonista de Rebecca procedia por gestos defensivos que visavam desbancar sua antecessora de uma posição de autoridade simbólica, um filme que “veio depois” se constitui, de forma análoga, por estratégias figurativas que buscam mitigar a influência de uma obra precursora. Uma dessas estratégias, como veremos, é aquilo que Nicole Brenez (1998, p. 332) chamou de “estudo visual”: trabalho de escavação das imagens do passado que se dedica a “revelar o que, enquanto campo, elas escondem do contracampo; desdobrar o que, enquanto plano, elas velam; demonstrar o que enquanto miradas, nela falta”.
Se certos filmes nos parecem reivindicar uma filiação cinematográfica, eles também demonstram que a retomada de uma linha (Deleuze, 1998) é a condição mesma pela qual um rompimento é possível. Na psicanálise freudiana, de teor essencialista, o acesso à ordem simbólica efetuado pela criança do sexo feminino se apoia não apenas na sobreidentificação com a mãe, mas igualmente no desejo de descontinuidade que subjaz ao processo. Por analogia, o “complexo de Rebeca” ecoa esse enredo identitário: o filme tardio conquista sua identidade por meio de um conflito ambivalente no qual a identificação com uma matriz é acompanhada de um forte desejo de desvio. O filme que “veio depois” equivale à figura da filha e, consequentemente, à heroína anônima do romance de Maurier, enquanto o filme precursor é correlativo à figura da mãe e, por conseguinte, à própria Rebecca.
Como a personagem Rebecca, a obra precursora existe enquanto rastro, fantasma, espectro: trata-se, como diria Jacques Derrida (1994), de uma presença ao mesmo tempo visível e invisível, que nos olha e para a qual não conseguimos devolver o olhar. A matriz, no “complexo de Rebecca”, é uma figuração espectral situada na zona indistinta da presença e da não-presença. O método instigado se constrói, assim, em torno de duas disposições: reconhecer, num primeiro momento, essas figuras espectrais “que não são inteiramente encerradas no campo da representação, que vagueiam pela superfície da tela” (Scheinfeigel, 2017, p. 51); e, depois, perceber como o trabalho figurativo sobre essa matriz institui uma ruptura em relação a ela.
Vislumbrando certos filmes como resultado do diálogo agonístico com seus fantasmas, o “complexo de Rebecca” inspira uma prática analítica pautada na percepção daquilo que, entre um filme e outro, os desloca mutuamente. Não se trata de reduzir o sentido de um a outro, mas compreendê-los como eventos relacionais cujo significado se extrai do intervalo entre ambos. Fundamentado na noção de “crítica antitética” (Bloom, 2002), o “complexo de Rebecca” intercede a favor de uma abordagem que vise certos filmes como interpretações distorcidas de obras anteriores. Ele surge, além disso, como opção a debates instáveis acerca de cinemas neoclássicos, maneiristas ou pós-modernos.
Bibliografia
- BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
BRENEZ, Nicole. De la figure en général et du corps en particulier: l’invention figurative au cinéma. Paris: De Boeck & Larcier, 1998.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 1994.
HEINICH, Nathalie. Estados da mulher: a identificação feminina na ficção ocidental. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
SCHEINFEIGEL, Maxime. Un film peut en cacher une autre: Orson Welles, André Téchiné, Béla Tarr, Lasse Hallström, Leos Carax. Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2017.