Ficha do Proponente
Proponente
- Fabio Camarneiro (UFES)
Minicurrículo
- Fabio Camarneiro é professor adjunto no curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES; doutor em Meios e Processos Audiovisuais e mestre em Comunicação Impressa e Audiovisual, ambos pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP; um dos organizadores do livro “Audiovisualidades contemporâneas: estética, política, tecnologia” (2023).
Ficha do Trabalho
Título
- Um outro olhar sobre a paisagem latino-americana: uma análise de Araya
Formato
- Presencial
Resumo
- A questão da paisagem denota as complexas relações entre ser humano e natureza. Em Araya (1959), a cineasta venezuelana Margot Benacerraf mostra como o espaço desértico, fustigado pelo sol e pelo mar, define as relações sociais e econômicas de famílias que tiram sua subsistência da extração de sal e da pesca. Aqui, a forma fílmica constrói a paisagem não como mero “cenário”, mas como alternativa à cisão positivista entre natureza e cultura e ao olhar (colonial e machista) ligado à paisagem.
Resumo expandido
- Ondas de calor, chuvas torrenciais, secas intensas… a presença crescente de tais eventos evidencia que a catástrofe climática, de anúncio apocalíptico, tornou-se a realidade social e política de nossa época. Neste contexto, a questão da paisagem é cada vez mais central para compreendermos as relações entre o ser humano e essa entidade que, desde há muito tempo, insistimos em nomear “natureza”.
Certo pensamento sobre a paisagem está intimamente relacionado ao colonialismo e o neocolonialismo: para Descartes, os homens seriam “senhores e possuidores da natureza”, o que transformaria o mundo a ser conquistado em algo “feminino e espacialmente exposto para a exploração masculina, (…) organizado no interesse do poder imperial” (McCLINTOCK, 2010, p. 47). Para a autora, os pontos de contato entre as questões de gênero e os colonialismos não devem passar despercebidos: ambos, espaço natural e corpo feminino, se confundiriam na metáfora da mata “virgem”, que se encontraria mais ou menos passiva e à espera de ser conquistada pela força masculina colonial (p. 57-8).
Especialmente após o advento das teorias decoloniais e dos estudos ligados ao feminismo, a questão da paisagem ganha novos contornos, que interessam sobremaneira o pensamento e o cinema latino-americanos: não mais territórios “intocados”, as paisagens passam a ser a arena em que entram em disputa as interações entre o ser humano e seu entorno. Além disso, a relação pictórica entre imagens à “frente” e ao “fundo” começa a ser percebida de outra maneira, com a paisagem deixando de ser mero “cenário” para recuperar um lugar de protagonismo na análise fílmica.
A paisagem sempre foi presente no cinema do continente: ao falar sobre o cânone do Nuevo Cine Latinoamericano, Cavalcanti Tedesco lembra a busca por imagens distantes do padrão hollywoodiano, “imagens próprias, (…) capazes de expressar a verdade de uma identidade nacional e/ou regional e [que] muitas vezes se traduziam (…) em uma luz dura e natural, grande profundidade de campo e alto contraste” (CAVALCANTI TEDESCO, 2022, p. 44). Em especial, a autora trata de Araya (1959), da cineasta venezuelana Margot Benacerraf, longa-metragem que venceu, entre outros, o Prêmio Internacional da Crítica (FIPRESCI) no Festival de Cannes.
Em seus primeiros momentos, o filme de Benacerraf apresenta a península de Araya, na Venezuela, como um vasto espaço desértico, fustigado pelo sol inclemente e pelas ondas do Mar do Caribe. Aos poucos, nesse espaço que parecia inabitado, surgem os habitantes da península e, em especial, três famílias que tiram sua subsistência da extração de sal e da pesca. É a presença do espaço natural que define as relações sociais e econômicas do lugar. Em Araya,
O espaço adota papel ativo e uma influência determinante sobre aqueles que o ocupam, sendo um elemento de função dramática preponderante. (…) Ao se dedicar ao embate entre o homem e a natureza, Benacerraf se aproxima de Flaherty, que extrai do próprio ambiente os elementos fundamentais do drama. (BARRENHA, 2014, p. 215).
Em Araya, podemos entender a paisagem como fonte de extrativismo e, ao mesmo tempo, como lugar do embate tradição/modernidade: “De um lado, há a urgência por registrar arcaicos modos de produção em extinção (…). De outro, aparece a desconfiança e o questionamento das teorias desenvolvimentistas que invadiam a região” (BARRENHA, 2014, p. 216).
Em nossa análise, Araya tensiona a cisão positivista entre natureza e cultura, e coloca em xeque o olhar (masculino e colonial) frente à natureza. Contra isso, o filme de Benacerraf se aproxima de forma mais gradual e mais integral às relações entre ser humano e paisagem. Assim, o filme se aproxima de Simmel, para quem a paisagem seria inseparável de uma “unidade”, e só existiria quando “nossos sentidos deixam de se concentrar em um elemento particular e abarcam um campo visual mais amplo, ou seja, percebem uma nova unidade que não é a mera soma de elementos pontuais” (SIMMEL, 2014, p. 7).
Bibliografia
- BARRENHA, Natalia Christofoletti. “As veias abertas da América Latina: um ensaio sobre Araya”. RuMoRes, v. 8, n. 15, pp. 207-223, 2014. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2024.
CAVALCANTI TEDESCO, Marina. “Margot Benacerraf: (não) pioneira do Nuevo Cine Latinoamericano”. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, v. 21, n. 39, pp. 38-55, 2022. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2024.
INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. tradução: Fábio Creder. Petrópolis: Vozes, 2015. (Coleção Antropologia)
McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. tradução: Plinio Dentzien. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
SIMMEL, Georg. Filosofía del paisaje. versión: Mathias Andiau. Madrid: Casimiro Libros, 2014.