Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Mariana Gregorio (USP)

Minicurrículo

    Mariana Vieira Gregorio é mestranda no Programa de Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Graduou-se no Curso Superior do Audiovisual da mesma instituição. Desde 2015 trabalha como editora de som e já participou de mais de 30 projetos audiovisuais na pós-produção de som. Em 2021, publicou o livro de contos Noturna pela Editora Patuá. Atualmente, pesquisa voz e literatura no cinema.

Ficha do Trabalho

Título

    A voz atravessa a palavra: as vozes nômades de Bom Trabalho

Seminário

    Estilo e som no audiovisual

Formato

    Presencial

Resumo

    Literatura e cinema, ópera e dança, palavra e voz. No filme Bom trabalho (Claire Denis, 1999), as vozes deslocam-se da superfície da tela ao corpo do ator, da palavra encarnada às respirações ofegantes, da solidão ao coro e à polifonia. A pesquisa investiga essas distintas vozes a partir das confluências da novela Billy Budd de Herman Melville e da ópera homônima de Benjamin Britten em Bom Trabalho, realçando a sensorialidade, o homoerotismo e a dimensão pós-colonial do filme.

Resumo expandido

    Minha pesquisa de mestrado parte da análise de Bom Trabalho (Claire Denis, 1999) e Drive my Car (Ryûsuke Hamaguchi, 2021) para discutir a voz e a palavra no cinema. Pretendo aqui focar em Bom Trabalho, que é inspirado em Billy Budd de Herman Melville e que usa trechos da ópera de Benjamin Britten, adaptada da novela. O filme, uma adaptação que não tenta ser fiel, é sobre a culpa e o desejo homossexual inaudito de Galoup quando era oficial da Legião Estrangeira Francesa em Djibouti, em África. Através das confluências entre literatura e cinema, novela e ópera, palavra e voz, desejo e pós-colonialidade embrenham-se no filme de Denis. Mas é a voz que norteia minha pesquisa.

    O medievalista Paul Zumthor pesquisa a passagem – ou ruptura? – da poesia oral para a literatura escrita na Europa. A historiografia do cinema também tem a sua cisão, a sua própria queda do paraíso, como diz Chion (2004): a passagem do cinema mudo para o falado. Em comum, ambas historiografias se revolvem em torno dessa queda que gera uma mudança irrefreável em suas linguagens. Porém, com uma diferença crucial: enquanto a literatura tornou-se muda, o cinema povoou-se de vozes. Além disso, o “paraíso” das imagens mudas do cinema durou apenas trinta anos. No entanto, foi tempo o suficiente para as conhecidas reações contrárias ao cinema falado, como se voz fosse antítese de cinema. Essa resistência explica-se, em parte, pela quantidade numerosa de adaptações literárias que foram produzidas, junto com um temor da teatralização do cinema. É a partir dessas críticas que André Bazin (1952) vai escrever o artigo Pela defesa do cinema impuro, e que, hoje, é referencial dentro dos estudos de intermidialidade no cinema – e ressaltam a confluência do cinema com as outras mídias ao invés de buscar sua especificidade. Nesse ponto, voz e intermidialidade se cruzam.

    A voz, para Zumthor (2018, p. 78), “se situa entre o corpo e a palavra” e, para a filósofa italiana Cavarero (p. 28, 2011), “excede” a palavra. Impura, a voz contamina-se pelo timbre e entonação, pela reverberação no espaço, pela mistura com outras vozes e ruídos. Porém, na captação de som direto e no tratamento de voz na pós-produção, convencionou-se isolá-la dos outros sons, deixando-a clara e inteligível, e até dar destaque à sincronicidade voz-imagem. Chion (2004) justifica esse verbocentrismo do cinema por conta da forma como a escuta humana opera, privilegiando a linguagem. A voz, então, soa como algo óbvio – ela diz até demais – e, talvez por isso, é pouco estudada no cinema.

    Em Bom Trabalho, a voz semi-acusmática, uma “voz-eu” (Chion, 2004), de Galoup, vaga pela superfície da imagem. Ela não tem o poder de interferir no passado. É ambígua, lacunar, poética. Sua sonoridade diferencia-se tanto dos diálogos quanto dos sons vocais ofegantes dos legionários que se exercitam no deserto. Essas vozes de exaustão e esforço, em conjunção com as imagens e os cortes, imprimem sensorialidade, ritmo e erotismo nas cenas – como uma escuta “háptica” (Marks, 2007) em que o filme parece transpirar e se exceder junto àqueles corpos.

    A voz de Galoup, solitária, soa como um contraponto diante das vozes coletivas ou “coralidades” (Connor, 2015) do filme. Na cena inicial do trem e da final no deserto, o vozerio (walla) dos africanos é incompreensível no que tange à linguagem, mas seu tom, volume, polifonia e massa sonora ocupam o espaço geográfico que lhes é devido. Os cantos dos hinos legionários e os coros da ópera, por outro lado, são harmônicos, organizados. Os hinos legionários transmitem a ideologia militar da Legião Francesa que, apesar de aceitar homens de qualquer país, obriga-os a tornarem-se um só corpo. O trecho coral da ópera repete, enquanto os legionários suam no deserto, Oh Heave!, que pode ser traduzido tanto como suspirar quanto hastear. O coro de transpiração dos marinheiros de Billy Budd torna-se o coro dos legionários, a voz sufocada de quem não tem voz. Sem lar, pátria ou combate.

Bibliografia

    BBATE, C. e PARKER, R. Uma História da Ópera. Companhia das Letras: São Paulo, 2012.
    BAZIN, A. O que é o cinema?. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
    CHION, M. A audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Edições Textos & Grafia, 2008.
    CHION, M. La voz en el cine. Madrid: Cátedra, 2004.
    DURAS, M. Os olhos verdes. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1988
    CAVARERO, A. Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
    CONNOR, S. Choralities. A lecture given at Voices and Noises, Audiovisualities Lab of the Franklin Humanities Institute, Duke University, 2015.
    MARKS, L. The skin of the film intercultural cinema, embodiment, and the senses. Duke Univ. Press: California, 2007.
    MELVILLE, H. Billy Budd. Grua Livros: São Paulo, 2014.
    NAGIB, L. Impure Cinema: Intermedial and Intercultural Approaches to Film, London: I.B. Tauris, 2014.
    ZUMTHOR, P. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.