Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Carolina Soares Pires (USP)

Minicurrículo

    Carolina Soares é pesquisadora e crítica de cinema. Realiza pesquisas em audiovisual, com foco na relação entre literatura e cinema/TV, adaptação e cinema brasileiro. É Doutora em Meios e processos audiovisuais pela ECA-USP. É também realizadora e educadora audiovisual.

Ficha do Trabalho

Título

    Desafios da adaptação do narrador autoconsciente e não-confiável

Formato

    Presencial

Resumo

    Narradores autoconscientes e não-confiáveis estão no centro de debates no campo da narratologia literária há décadas; mais recentemente, o debate estendeu-se para os meios audiovisuais. Com base na análise de duas adaptações do romance Dom Casmurro (1899): Capitu (1968) e Capitu (2008), respectivamente para cinema e televisão, articula-se um paralelo tendo como eixo a estrutura narrativa, no esforço de compreender os desafios que a adaptação de narradores autoconscientes e não-confiáveis impõe.

Resumo expandido

    São notórias, em Dom Casmurro, a intensidade e a extensão da narrativa de Machado de Assis. Crítica, dinâmica e repleta de metalinguagem, sua narrativa interage com o leitor, conduzindo-o a uma leitura de reflexão. Este se torna, assim, atento e apto a ler além das palavras. Em vista disso, o pressuposto de uma consciência do próprio texto e da relação do narrador com narratários é de suma importância, tanto para a leitura quanto para a produção da narrativa machadiana. Machado exibe seu ofício, ao mesmo tempo que dá pistas – muitas vezes, falsas –, criando um tipo de quebra-cabeça, do qual cabe aos leitores inferir significado. Dom Casmurro convoca o leitor implícito a participar porque cabe a este decifrar, ativamente, o sentido do texto. Nesse quebra-cabeça narrativo, as pistas vão se encaixando, como peças, até formar uma imagem bem diferente da que o narrador retrata. A narração não-confiável, estruturante em Dom Casmurro, é um conceito narrativo, definido pela primeira vez por Wayne Booth, em 1961. O termo narrador não-confiável define um tipo de narrador que constrói uma relação de descrédito de si próprio, codificada pelo autor implícito. Seymour Chatman (1978) argumenta que, na narração não-confiável, as verdadeiras intenções da história são encriptadas e subtextualmente reveladas aos narratários. Cabe a estes reinterpretar retrospectivamente a história para descobrir o subtexto. A própria natureza da narrativa audiovisual implica um processo de narração compósito, em que a mise-en-scène, o enquadramento, os ângulos da câmera, a narração verbal/voice-over (quando presente), o ponto de vista, a trilha sonora, a luz, a cor, a edição etc. estão todos entrelaçados. A combinação desses diversos dispositivos de comunicação é o que Seymour Chatman (1990) chama de narrador cinematográfico. Vários autores (Fludernik, 2009; Olson, 2003), incluindo Chatman (1978; 1990), postulam o reconhecimento do narrador como um personagem com uma condição prévia para a não-confiabilidade. A identificação do relato feito pelo narrador como contraditório ou suspeito e a subsequente responsabilização desse narrador pela incompatibilidade entre seu discurso e o significado implícito da narrativa dependem de julgamentos sobre integridade e motivo, somente possíveis em um narrador de alguma forma personalizado. A discussão também envolve a questão do ponto de vista: a maioria dos estudiosos considera que o narrador não-confiável prototípico é um narrador em primeira pessoa ou, pelo menos, focalizado internamente. Isso, por sua vez, chama atenção para o estabelecimento do ponto de vista nas narrativas audiovisuais. Teóricos que empregam o conceito de narração não-confiável em relação a instâncias cinematográficas geralmente enfatizam as distinções entre a narração literária e a cinematográfica. Notadamente, a narração audiovisual é com frequência retratada como uma entidade impessoal e abstrata, desprovida de atributos psicológicos. No audiovisual, os narradores personificados, como os narradores heterodiegéticos em voice-over ou narradores-personagens, são considerados elementos opcionais de natureza secundária. Diferentemente de suas contrapartes literárias, esses narradores cinematográficos oferecem expressões verbais que abrangem apenas uma parte do discurso geral. pela própria diferença entre meios expressivos e suas possibilidades e capacidades, devemos aplicar outras regras na categorização de narradores cinematográficos como não-confiáveis?
    Esta pesquisa parte de uma constatação sobre a dificuldade de adaptar Machado de Assis para o cinema e a televisão. Algumas adaptações de Dom Casmurro, como Capitu (1968), de Paulo César Saraceni, foram praticamente esquecidas, por não captarem elementos provocativos do romance que as inspira. A pergunta que guia esta pesquisa é: a dificuldade de adaptar Machado seria resultado da dificuldade geral para adaptar o narrador não-confiável? E o narrador autoconsciente, que desafios e obstáculos opõe?

Bibliografia

    CHATMAN, Seymour. Story and discourse: narrative structure in fiction and film. Ithaca, NY: Cornell U.P., 1978.
    _____. Coming to Terms: The Rhetoric of Narrative in Fiction and Film. Ithaca, NY: Cornell U. P., 1990.
    FLUDERNIK, Monika. An Introduction to Narratology. London: Routledge, 2009.
    HÜHN, P. et al., eds. Point of View, Perspective, and Focalization. Modeling Mediation in Narrative. Berlin: de Gruyter, 2009.
    JAHN, Manfred. 2021. A Guide to Narratological Film Analysis. English Department, University of Cologne.
    OLSON, Greta. Reconsidering Unreliability: Fallible and Untrustworthy Narrators. Narrative, v. 11, n.1, p. 93-109, 2003.
    SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. Novos Estudos CEBRAP, n. 29, p. 85-97, 1991.
    STAM, Robert. A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
    ______. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Ilha do Desterro, Florianópolis, n. 51, p.19-53, jul/dez, 2006.