Ficha do Proponente
Proponente
- Anália Alencar Vieira (UFF)
Minicurrículo
- Mestranda em Cinema e Audiovisual (PPGCine/UFF), bacharel em Comunicação Social (UFRN) e agroecóloga (SERTA/PE). Além de curadora de mostras de cinema socioambiental, integrou o Júri Jovem da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes e a curadoria de filmes internacionais do 32º Curta Kinoforum. Na direção audiovisual, realizou diversos curtas-metragens, dentre eles Bege Euforia (2022), com os prêmios de melhor fotografia, elenco e cartaz; Vendo de Olhos Fechados (2023); e Tato Fino (em produção).
Ficha do Trabalho
Título
- O sonho como travessia diegética e entre mundos
Formato
- Presencial
Resumo
- O presente trabalho analisa as sequências de sonhos dos filmes indigenistas Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018), A Febre (2019) e EAMI (2022), que acionam as experiências oníricas de suas protagonistas como propulsores de pontos de virada e de argumentação diegética. Direcionando a atenção sobre a articulação dos seus elementos, propomos uma compreensão do arco das personagens humanas e mais que humanas modificado na relação com a paisagem através do direcionamento visionário.
Resumo expandido
- Nos âmbitos da pesquisa e da prática em cinema e audiovisual, a abordagem de obras que representam experiências oníricas geralmente se localiza a partir de produções emergidas nos contextos da avant-garde, com “descontinuidades, fragmentações e associações oníricas de motivação freudiana” (RIBEIRO, 2019, p. 317); do realismo psicológico; da contracultura e do movimento psicodélico dos anos 1960. Aqui, as produções audiovisuais passíveis de aproximação são obras contemporâneas cujo enfoque entrecruza a experiência do sonho em suas narrativas a partir de perspectivas ameríndias. Para além de uma experimentação estética ou do sonho como aspiração consumista, em que “a narrativa onírica representa a obtenção de alguma recompensa” (IBID, p. 368), os filmes balizadores deste trabalho podem ser localizados enquanto propostas que acionam as experiências visionárias não somente como um artifício narrativo — embora o recorte que aqui nos interessa também seja este —, mas oriundas do contato com cosmovisões ameríndias e do constructo de realidades compartilhadas.
Nesse sentido, estudos de disciplinas transversais orientam aquilo que nos interessa no corpus fílmico e conceitual em questão, uma vez que não partimos da mais conhecida interpretação dos sonhos nascida na sociedade burguesa vienense através da psicanálise freudiana, interessada na análise dos sonhos para acessar desejos reprimidos. Diversamente, aderimos ao acontecimento onírico ameríndio à luz, por exemplo, do trabalho da antropóloga Hanna Limulja (2022), que constrói uma etnografia dos sonhos dos povos Yanomami, destacando o modo como vivenciam os mitos, ao dormir, e a importância atribuída aos sonhos ao serem compartilhados enquanto prática diária na vigília, uma vez sendo formas complementares de se estar e de se relacionar com o mundo. Nessa perspectiva, a experiência onírica é tão real quanto a da vigília, sendo uma forma legítima e efetiva de entrar em contato com outros lugares e pessoas, sonhando além das histórias pessoais e encontrando subsídios, nos sonhos, para produzirem resistência na vigília.
Para a fecundação desse diálogo, portanto, as obras pesquisadas não se encerram como uma emulação de estados alterados, tampouco em uma oclusa incursão temática audiovisual sobre o sonho na qualidade de objeto, mas se relacionam enquanto propostas que derivam de aspectos importantes da experiência onírica na cosmovisão dos povos Krahô, Desana e Ayoreo, respectivamente presentes nos longas-metragens Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018), de João Salaviza e Renée Nader Messora; A Febre (2019), de Maya Da-Rin; e EAMI (2022), de Paz Encina. Essa mobilização conjunta interessa ao presente estudo devido à proeminência de experiências oníricas em consonância com práticas ameríndias que, embora sejam diferentes, coincidem ao conceber o ato de sonhar como uma ação na qual não há uma ruptura com o real, mas integra e até mesmo manifesta a realidade, ultrapassando os dualismos do pensamento ocidental e transpondo o valor do compartilhamento de sonhos para as tomadas de decisão individuais e coletivas, características que são refletidas no processo fílmico e articuladas na diegese de cada longa como pontos de virada propulsores de mudanças significativas na realidade ficcional de suas protagonistas.
A partir da aproximação entre os regimes de percepção das ontologias ameríndias em questão, apresentadas pela fenomenologia do sonho, e a sensorialidade cinematográfica como base para a construção onírica, analisaremos a inserção, as relações e os agenciamentos pelos quais os sonhos se tornam responsáveis por movimentar nas respectivas narrativas, investigando de que modo e com quais elementos tais experiências são transpostas nos filmes e como revelam e produzem um engajamento sensível com aquilo que nos circunda, sob a hipótese de que acionam perspectivas não-antropocêntricas e propiciam uma revisão epistemológica e política quanto a uma integração entre natureza e cultura.
Bibliografia
- AGUILLERA, Yanet. Como pensar o cinema indígena? A paisagem, uma categoria do pensamento. Arte & Ensaios, n. 38, p. 97-105, julho, 2019.
LIMULJA, Hanna. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
MARGULIS, Lynn. Planeta simbiótico: um novo olhar para a evolução. Rio de Janeiro: Dantes, 2022.
MARKS, Laura. The Skin of Film: intercultural cinema, embodiment and the senses. Duke University Press, 2000.
MUSSEL, Felippe Schultz. Cinema, acustemologia, cosmoaudição: atravessamentos possíveis. In: XXIV Encontro SOCINE: Inventar futuros possíveis. 2022, São Paulo.
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. 1a ed. São Paulo: Editora Schwarcz, 2019.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: N-1 Edições, 2015.