Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Julio Bezerra (UFMS)

Minicurrículo

    Professor do curso de Audiovisual e do PPGCOM da UFMS. Fez estágios pós-doutorais na ECO-UFRJ e na Columbia University. Autor de “Documentário e jornalismo” e “A eterna novidade do mundo”. Repórter e crítico de cinema, colaborou com uma ampla gama de publicações. Curador e produtor de diversas retrospectivas. Coproduziu e codirigiu a série “Esquinas” para o Canal Brasil (Globosat), dirigiu os curtas “E agora?” (2014) e “Pontos corridos” (2017).

Ficha do Trabalho

Título

    A imagem digital: colapso da tarefa reflexiva e outra fenomenologia

Formato

    Presencial

Resumo

    A imagem contemporânea é cada vez mais marcada por uma espécie de tarefa reflexiva. Essa tarefa remonta aos cinemas modernos, que fizeram dessa estratégia uma força e bandeira. Hoje, contudo, mesmo a mais espetacular das imagens assume o dever da reflexividade. Objetivo dessa proposta é investigar esse cenário por meio da comédia Pânico na escola, que parece promover uma espécie de colapso da reflexividade. Esse curto-circuito também nos leva a uma imagem não fenomenológica ou pós-perceptual.

Resumo expandido

    Vladimir Safatle diagnostica uma ideologia reflexiva no coração do capitalismo contemporâneo. Uma ideologia que absorve sua própria reflexividade e carrega em si mesma a sua crítica. Sabemos bem como o cinema das vanguardas e em sua era moderna fizeram do modo reflexivo (fragmentado em variadas possibilidades) uma de suas maiores forças e bandeiras. A imagem se produzia enquanto se revelava como imagem – e algum nível de autonomia deveria ser reservado ao espectador. Hoje, contudo, mesmo a mais espetacular das imagens assume o dever da reflexividade e incorpora a ideia de autonomia, como um valor como qualquer outro. A mise-en-abyme não é mais um procedimento reflexivo-crítico, mas de uma estratégia de adesão. Não à toa, para Safatle, o cinismo é o afeto ou lógica “oficial”, por assim dizer, do capitalismo neoliberal.

    O cinema ou regime digital mais parece exacerbar esse traço. A imagem digital alimenta uma clivagem (e sua consequente dissolução e gerenciamento) entre os domínios da realidade e do artifício. Não há diferença entre a realidade e a representação mediática dessa realidade. O digital elimina o trabalho produtivo intensivo envolvido na produção das imagens em favor de uma câmera mais leve e espontânea, capaz, quem sabe, de capturar a realidade a qualquer momento e com menor esforço. O digital também nos oferece a possibilidade de um controle total da imagem. A imagem digital estimula e incorpora uma certa indeterminação, mas sem abrir mão do controle. Ela é certamente o contraste conflituoso dessas duas promessas.

    O que nos interessa nessa apresentação é discutir como um filme como Pânico na escola, de Joseph Kahn refaz essa equação tirando sarro da tarefa reflexiva. Tudo neste filme tem como pano de fundo os estereótipos e o ritmo incessante da circulação cultural. Tudo faz parte de um jogo exacerbado de autoreferencialidade. Os alunos de uma escola secundária, suspeitos na onda de assassinatos que tomaram colégio de assalto, estão detidos na biblioteca no dia da festa de formatura e se esforçam para descobrir quem é o assassino –inspirado em um serial killer de uma franquia cinematográfica. A investigação os leva ao novo e inédito filme da série de terror “Cinderfella”, que eles baixam pelo celular. Eles veem uma cena de jovens sentados em círculo, muito parecidos com eles mesmos, que, por sua vez, tentam desvendar o assassino pirateando um filme na Internet… A sequência se desdobra em camadas intermináveis de autoreferência, mas Pânico na escola não as celebra. O que se constata talvez seja o próprio colapso do dever reflexivo.

    Esse curto-circuito da reflexividade talvez também revele uma relação com a ideia de uma “imagem pós-perceptual” ou “não fenomenológica”. Este é outro ponto de interesse nessa apresentação. Pânico na escola elucida o que Shane Denson chamou de “descorrelação” entre as imagens digitais e a subjetividade humana e suas perspectivas (fenomenológica, narrativa e visual). As relações mais tradicionais entre o espectador e o objeto capturado audiovisualmente e justaposto pela montagem em uma determinada sucessão estão a dissolver-se e novos contatos estão sendo forjados nos intervalos microtemporais do processamento algorítmico. E assim, novas configurações e parâmetros de percepção e agência são estabelecidos. Ou seja, essa transformação diz respeito ao estabelecimento de uma nova base material sobre a qual as imagens são produzidas e disponibilizadas à percepção. A saída do domínio da fenomenalidade provará ser precisamente o que torna a imagem digital tão interessante e promissora para a revitalização da própria fenomenologia.

    Por fim, é a noção de especulação que nos interessa aqui. Ela procura imaginar o que acontece quando uma tendência excede o seu potencial e vai contra ou ultrapassa os seus próprios limites. O colapso da tarefa reflexiva e uma fenomenologia diversa aceleram a nossa imaginação, preveem formas futuras de ser diferentes das do presente e descontínuas com ele.

Bibliografia

    BELLER, Jonathan. The Cinematic Mode of Production: Attention Economy and the Society of the Spectacle. Lebanon, NH: University Press of New England, 2006.

    LAROCCA, David (org.) Metacinema: The Form and Content of Filmic Reference and Reflexivity. Oxford: Oxford University Press, 2022

    SAFATLE, Vladmir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

    SHAVIRO, Steven. The Rhythm Image – Music Videos and New Audiovisual Forms. Nova York: Bloomsbury Publishing, 2023.