Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Ana Caroline de Almeida (UFPE)

Minicurrículo

    Carol Almeida é pesquisadora, professora e curadora de cinema. Doutora no programa de pós-graduação em Comunicação na UFPE, com pesquisa centrada no cinema contemporâneo brasileiro. Faz parte da equipe curatorial do Festival Olhar de Cinema/Curitiba, da Mostra de Cinema Árabe Feminino e da Mostra que Desejo, além de ter participado da equipe curatorial de festivais como Recifest, festival de cinema queer do Recife, e For Rainbow, festival de cinema queer em Fortaleza.

Ficha do Trabalho

Título

    Contrassexualidade como motor fílmico: Orlando com Preciado e Ottinger

Seminário

    Tenda Cuir

Formato

    Presencial

Resumo

    Em ‘Orlando, minha biografia política’, o filósofo Paul B. Preciado faz uma leitura biopolítica do famoso romance de Virginia Woolf em um filme tecido nas costuras entre o texto literário e a sua própria “biografia política”. Há um gesto semelhante, mas ao mesmo tempo radicalmente diferente, em dois filmes-chave da diretora alemã Ulrike Ottinger: ‘Laocoonte e seus filhos’ (1973) e ‘Freak Orlando’ (1982). A comunicação se dá a partir da relação-ralação entre esses três filmes.

Resumo expandido

    “Um dia alguém me perguntou: por que você não escreve sua biografia? Eu respondi: porque a porra da Virginia Woolf escreveu por mim em 1928.” Assim começa ‘Orlando, minha biografia política’, filme do filósofo, escritor e agora realizador de cinema Paul B. Preciado. No seu exercício de leitura e cirúrgica reelaboração biopolítica de Orlando, famoso romance de Virginia Woolf, Preciado produz um filme de corpos múltiplos, tecido nas costuras entre o texto literário de Virginia e a sua própria “biografia política” que, naturalmente, não é só sua, é de várias pessoas.
    Mas essa não é a primeira vez que alguém faz uma adaptação livre do livro de Virginia. A intenção dessa comunicação é colocar em atrito aquilo que está organizado por Preciado em uma narratividade simultaneamente inventiva e pedagógica – “é necessário sobreviver à violência para poder contar nossa história, é necessário contar nossa história para poder sobreviver à violência”, ele nos diz no filme – com duas outras adaptações cinematográficas de Orlando que rompem definitivamente com o pacto da própria narratividade e do realismo: ‘Laocoonte e seus filhos’ (1973) e ‘Freak Orlando’ (1982), ambos filmes da diretora alemã Ulrike Ottinger.
    No primeiro, feito em parceria com Tabea Blumenschein, conhecemos as várias transformações da personagem Esmeralda del Rio em Olimpia Vincitor, em Linda MacNamara e no gigolô Jimmy Junod a partir de uma narração propositalmente zombeteira. No segundo, Orlando Zyklopa que é Orlando Orlanda que é Orlando Capricho e que é Mr. Orlando, caminham por cenários surrealistas em que as cargas simbólicas da história da arte, da religião e do consumismo se misturam sem pudor.
    A hipótese é de que os filmes de Ottinger expandem na organização de suas imagens aquilo que Preciado expõe como epistemologia no discurso do seu filme. Explica-se: no filme de Preciado, vemos um sem-número de ‘Orlandos’ que cruzam seus relatos pessoais com aquilo que o livro de Virginia profeticamente já contava sobre essas vidas que jamais puderam ser definidas e encarceradas dentro de um (cis)tema binário de determinação de gênero e de sexualidade. Com isso, a “biografia política” de Preciado se monta como uma materialização audiovisual discursiva do conceito de contrassexualidade, desenvolvido pelo mesmo, acionando as práticas tradicionalmente violentas de documentação, arquivação e medicalização para libertação das inscrições capitalistas no corpo.
    A hipótese aqui é de que os filmes de Ottinger, que precedem em vários anos os textos de Preciado, mas que são igualmente enebriados pelo mesmo romance de Virginia Woolf, nos ajudam a se relacionar com essa contrassexualidade não mais pela chave da enunciação verbal dos corpos, mas por uma rejeição completa da condução narrativa. No entanto, em ambos os casos, ou seja, tanto no empreendimento audiovisual de Preciado, quando nos de Ottinger, há uma prática metodológica de usar o texto literário não mais como referente – como acontece, por exemplo, na adaptação cinematográfica de Sally Potter para ‘Orlando’ – mas como filmes-dildo, no sentido de que “sua plasticidade carnal desestabiliza a distinção entre o imitado e o imitador, entre a verdade e a representação da verdade, entre a referência e o referente, entre a natureza e o artifício” (PRECIADO, 2022, p. 40).
    Na “biografia política” de Preciado, o filme pode ser lido também (mas não só) como um método de pesquisa a partir do momento em que propõe, na encenação clímax de seu roteiro, uma intervenção médica no biocorpo do livro de Virginia. Nos filmes de Ottinger, o método se dá fundamentalmente pelo deboche e pela estridência performativa daquilo que está contido nas entrelinhas do livro. Se então “o corpo é um texto socialmente construído” (PRECIADO, 2022, p. 37), seria possível pensar esses (e outros) filmes queers/cuirs como textos corporalmente manifestados para funcionarem como dildos da linguagem?

Bibliografia

    AZEVEDO, Dri. Reconstruções queers: por uma utopia do lar. Cotia, SP: Margem da Palavra, 2022.
    BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. Trad. V. Dainelli e D. Y. Françoli. São Paulo: n-1 edições, 2019.
    MUELLER, Roswitha. “Interview with Ulrike Ottinger.” Discourse, vol. 4, Winter, 1981.
    PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
    PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
    WITTIG, Monique. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.
    WOOLF, Virginia. Orlando, uma biografia. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.