Ficha do Proponente
Proponente
- Gabriela Kvacek Betella (UNESP)
Minicurrículo
- Professora assistente doutora MS3.2 na FCL-UNESP-Assis, área de Língua e Literatura italiana. Mestre e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), com pós-doc no IEB-USP. Atuação voltada para os estudos das relações entre Literatura, História e Audiovisual, no âmbito da coordenação da área de italiano no Departamento de Letras Modernas e no programa de pós-graduação de sua unidade, na linha de pesquisa Literatura Comparada e Estudos Culturais.
Ficha do Trabalho
Título
- Nanni Moretti, leitor de Abraham Yehoshua e Eshkol Nevo
Formato
- Presencial
Resumo
- Comparamos atitudes estéticas de Nanni Moretti em diferentes momentos de sua filmografia a partir da citação do romance Un divorzio tardivo (de A. Yehoshua) em Aprile (1998) e da adaptação de Tre piani (E. Nevo) para o filme homônimo de 2021. Investigamos as relações entre o foco narrativo nos romances e o ponto de vista nos filmes, destacando as maneiras de chamar a atenção para a estrutura e, sobretudo, para o esgotamento e a renovação possível de modos de narrar determinadas situações-limite.
Resumo expandido
- Em Aprile (Nanni Moretti, 1998), o protagonista é um cineasta que atravessa a gestação de seu primeiro filho, às voltas com a realização de um filme, hesitando entre um documentário e um musical. Na sequência do terraço, em que a esposa explica como será o parto, o personagem, interpretado pelo próprio Moretti, segura nas mãos um exemplar de Un divorzio tardivo (numa tradução livre, Um divórcio tardio), do israelense Abraham Yehoshua, observando a extensão do volume e constatando que naquele período só conseguiria ler contos. O romance de 1982 tem uma ação relativamente simples: Yehudà Kaminka retorna da América para Israel para se divorciar da ex-mulher Naomi, recolhida num manicômio pela tentativa de assassinato do ex-marido. O texto possui vários pontos de vista, cada personagem tem voz para “narrar” sua percepção dos fatos, com seu próprio estilo, oferecendo a cada capítulo uma focalização particular e ao romance uma perspectiva relativizadora, proporcionando ao leitor uma visão das camadas da crise familiar e das relações com a identidade judaica naquela conjuntura.
Dar atenção à trama de Yehoshua nos leva a algo maior que a citação casual e irônica no filme de Moretti, cujo foco narrativo forma um par com o filme anterior, Caro diario, e pode ser contrastado com a estrutura do romance. O espirituoso foco único de Moretti distrai o espectador ao unificar (ou encobrir) as camadas de contextos e a gravidade do fundo crítico que se volta para a família, para a sociedade, para o cinema italiano, para uma geração, para a intelectualidade, para a política. Ao contrário da escolha de Yehoshua, o ponto de vista dos filmes de Moretti nos anos de 1990 não é nada democrático, embora centrado no protagonista aparentemente inseguro e confessadamente obstinado na tarefa de cineasta engajado, mantendo o compromisso com o olhar crítico sobre a história individual e coletiva. Se Un divorzio tardivo se aproxima, conforme definiu seu protagonista, de uma “Odisseia às avessas” (e Adorno chamou o gênero romance de “epopeia em negativo”), os dois longas mais “autobiográficos” de Moretti também chamam a atenção para sua forma, pois se utilizam das sutilezas da “visão do eu”, com estratégias comparáveis à literatura de si, à autoficção e seus arredores para representar as dificuldades e, no limite, a falência desse tipo de ponto de vista e de algumas funções sociais representadas.
Em 2021, Moretti estreia Tre piani, o primeiro de seus filmes adaptado de uma obra literária. A escolha recai sobre o quinto romance de Eshkol Nevo, que possui uma estrutura coral em trios. Nevo optou em 2015 por três partes narradas em três vozes diferentes para explorar as histórias de três famílias residentes no mesmo prédio de três andares na periferia de Tel Aviv. O tom intimista, existencial e melancólico se transfere para o longa de Moretti, porém este não adota o percurso linear (e até didático) disposto a expor os três planos da alma humana: enquanto a narrativa de Nevo se distribui passo a passo sobre os níveis correspondentes aos elementos freudianos da formação da personalidade (id, ego e superego) e da consciência como representações da impulsividade, da racionalidade e da moralidade, o roteiro de Moretti, Pontremoli e Santella entrelaça as histórias e dilata o tempo numa trama que ilumina protagonistas em situações-limite, elimina seus monólogos confessionais do romance e exclui as interlocuções capazes de deslocar cada foco narrativo para fora de sua situação. No filme, a intransigência, a desconfiança e o egoísmo se destacam no comportamento das personagens com seus fantasmas burgueses transferidos para um condomínio em Roma, quartiere Prati. dominadas pelo medo, pelo senso de culpa ou pela desilusão. Não há traços detectáveis do humor que havia marcado Aprile, nosso contraponto neste estudo. Não existe autoironia morettiana em nenhuma das personagens em Tre piani e não há identificações do tipo “estar de acordo com uma minoria de pessoas”.
Bibliografia
- APRILE. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Itália, DVD, color., legendado, 78 min., 2008.
BETELLA, G. K. O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti. Devires v. 14, n. 2, jul/dez 2017, p. 124-145.
DE GAETANO, R. Nanni Moretti. Lo smarrimento del presente. Cosenza: Pellegrini, 2011.
GAUDREAULT, A.; JOST, F. A narrativa cinematográfica. Brasília: Ed. UnB, 2009.
GILI, J. A. Nanni Moretti. Roma: Gremese, 2006.
MAZIERSKA, E.; RASCAROLI, L. Il cinema di Nanni Moretti: sogni e diari. Roma: Gremese, 2006.
NEVO, E. Tre piani. Trad. O. Bannet e R. Scardi. Vicenza: Neri Pozza, 2017.
TRE PIANI. Direção: Nanni Moretti. Roteiro: Nanni Moretti, Valia Santella, Federica Pontremoli. Itália, DVD, color., legendado, 119 min., 2021.
YEHOSHUA, A. B. Un divorzio tardivo. Trad. G. Sciloni. Torino: Einaudi, 1996.