Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Edson Pereira da Costa Júnior (Unicamp)

Minicurrículo

    Pesquisador de pós-doutorado e professor participante no Instituto de Artes da Unicamp (FAPESP 21/02448-5). Foi pesquisador visitante na Duke University (BEPE 23/05177-8). Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP.

Ficha do Trabalho

Título

    A política das noites no cinema brasileiro contemporâneo

Seminário

    Cinema Comparado

Formato

    Presencial

Resumo

    A comunicação tem dois objetivos. Inicialmente, posicionar a noite como tropo político de certo cinema brasileiro contemporâneo, reconhecendo a sua funcionalidade como eixo para a análise comparada. Posteriormente, analisar Mãri Hi- A árvore do sonho (2023), do cineasta Morzaniel Ɨramari, sublinhando como o curta-metragem funda seu gesto político na tradução da cosmologia Yanomami e, igualmente, no recurso à noite e ao sonho como uma abertura para a alteridade.

Resumo expandido

    A comunicação argumenta que a noite tem sido mobilizada como tropo político do cinema brasileiro realizado na última década, prestando-se por isso a eixo, guia para uma análise comparada de filmes pertencentes a estilos, gêneros e modos de produção distintos. À primeira vista imbuída da expressividade ou mesmo simbologia negativa da treva, na esteira de certa iconografia do cinema, o que se defende é sua significação como espaço-tempo de acolhimento para a práxis e reflexão política. Essa possível unidade da noite como eixo transversal repousa, portanto, sobre sua função como instância de favorecimento à agência dos sujeitos históricos.
    Pelo menos dois agrupamentos de filmes ilustram o recorte defendido. Um remete a obras exclusiva ou majoritariamente noturnas, como Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (Pedro Maia de Brito, Cristiano Araújo, Camila Bastos, Aiano Bemfica, 2018), Os sonâmbulos (Tiago Mata Machado, 2018), Sete anos em maio (Affonso Uchôa, 2019), Tremor Iê (2019, Elena Meirelles, Lívia de Paiva) e República (2020, de Grace Passô). O outro concerne a filmes que exploram os desígnios e efeitos da noite, em contraposição ao dia, a exemplo de Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans, 2017), Chão (Camila Freitas, 2019), A febre (Maya Da-Rin, 2019), Mato seco em chamas (Adirley Queirós e Joana Pimenta, 2022). Nessa filmografia heterogênea, a noite conjura o momento de atuação para formas diversas de sobrevivência/resistência contra políticas neoliberais, terrorismos de Estado e colonialidade.
    Na história das ideias no Ocidente, a noite é geralmente associada a uma metafísica lumínica que relega a escuridão ao domínio do falso, do ilusório e das aparências (Blumenberg, 1993). Ecos de tal lastro epistêmico ressoam numa tradição hermenêutica que, na história da arte, compreende os predicados estéticos, técnicos e simbólicos envolvidos na representação da sombra em diferentes meios visuais. O que toca de perto nossa proposta, contudo, é o entendimento da noite como uma temporalidade política, como se vê, por exemplo, nos partícipes do romantismo do século XIX, que nela reconheceram a possibilidade de um modo de vida avesso ao mundo burguês moderno (Löwy, Sayre, 2015). Mais recentemente, uma bibliografia interdisciplinar tem discutido as especificidades do tempo social noturno, suas apropriações e suas regulações, às vezes em contraposição à ordem política e econômica que governa o dia (Candela, 2017).
    Sem responder diretamente ou mesmo se deixar constranger pelo aludido quadro epistêmico, o cinema brasileiro contemporâneo tem conferido à noite uma vocação política plural à luz de aspectos históricos, sociais e culturais de grupos que resistem à desigualdade derivada de marcadores de raça, classe e gênero. Desse modo, precisar a agência favorecida pela noite requer uma análise caso a caso, em vez de mera adequação a um arsenal teórico hegemônico.
    A comunicação compreende, ainda, a análise de um curta-metragem capaz de operar uma torsão na estirpe defendida, posto que, conquanto não se faça figurativamente presente, a noite é a sua condição de existência. Trata-se de Mãri Hi- A árvore do sonho (2023), do cineasta Morzaniel ?ramari. O filme deita raízes sobre a cosmovisão dos Yanomami, segundo a qual os sonhos participam diretamente do modo de conhecimento e intervenção no mundo. A obra se constitui em si mesma uma espécie de sonho-carta dirigido aos não-indígenas, um gesto cosmopolítico em prol da luta pela terra, especificamente contra o garimpo ilegal que há mais de três décadas invade a porção territorial Yanomami situada no Estado de Roraima. O objetivo é analisar como a política de Mãri Hi inclui a tradução da cosmologia Yanomami e, igualmente, o recurso à noite e aos sonhos em prol de uma abertura para a alteridade.

Bibliografia

    BLUMENBERG, Hans. Light as a Metaphor for Truth. In: LEVIN, David Michael (org.). Modernity and the Hegemony of Vision. Berkeley: University of California Press, 1993, p. 129–169.

    BRASIL, André. Ver por meio do invisível. O cinema como tradução xamânica. Revista Novos Estudos, V. 35.03, 2016, 125-146.
    CANDELA. Pour une sociologie politique de la nuit: Introduction. Cultures & Conflits, N. 105-06, 2017, p. 7-27.

    COELHO, Salomé Lopes, “Dream and yãkoana: hypotheses to understand cinema as the crossing of worlds”, La Furia Umana, n. 43, 2022.

    COSTA JÚNIOR, Edson. A política e as noites no cinema brasileiro recente. Revista ECO-Pós, v.25, n. 2, p.258-283, 2022.

    KOPENAWA, David & ALBERT, Bruce. A queda do céu. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cia das letras, 2015.

    LÖWY, M.; SAYRE,R. Revolta e melancolia. Tradução: Nair Fonseca. São Paulo: Boitempo, 2015.

    LIMULJA, Hanna. Uma etnografia dos sonhos yanomami: o desejo dos outros. São Paulo: Ubu Editora, 2022.