Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    André Correa da Silva de Araujo (UFRGS/FAPERGS)

Minicurrículo

    Doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado, com bolsa FAPERGS. Pesquisa as relações entre narrativas audiovisuais com o Antropoceno, em especial suas dinâmicas temporais, espaciais e subjetivas.

Ficha do Trabalho

Título

    Contra a utopia do visível: políticas e estéticas da noite em Ana Vaz

Formato

    Presencial

Resumo

    O trabalho trata do filme É noite na América, de Ana Vaz, sob a perspectiva de sua temporalidade noturna. Ao utilizar a noite como operador estético e político, a cineasta realiza uma crítica de um modo de visibilidade baseado na luz característico da modernidade. O conflito que articula o filme é o aparecimento de animais silvestres em Brasília, e nos interessa a construção cinematográfica desse conflito que articula a noite com disputas por território protagonizadas por não-humanos.

Resumo expandido

    O presente trabalho visa discutir o filme É noite na América, da cineasta brasileira Ana Vaz, sob a perspectiva de sua temporalidade noturna. É nossa hipótese que, ao utilizar a noite como operador estético e político, a cineasta realiza uma crítica de um modo de visibilidade baseado na luz, na claridade e na distinção, característico da modernidade. Ao criar uma Brasília noturna, Vaz acaba demonstrando um lado oculto da cidade, a partir de um conflito: o aparecimento de animais silvestres no ambiente urbano. Nos interessa a construção cinematográfica desse conflito, que conecta a questão do território urbano e as suas dinâmicas de ocupação e exclusão, das subjetividades não-humanas que o protagonizam e a temporalidade noturna como privilegiada para o seu aparecimento.

    O filme de Vaz se utiliza da técnica de fotografia da “noite americana” para criar uma Brasília alternativa, imersa na escuridão, que privilegia aqueles que, durante o dia, precisam se esconder. Trata-se dos habitantes animais de Brasília, que se tornam os protagonistas do filme de Vaz após um encontro da cineasta com o corpo de um tamanduá na beira de uma avenida que cruza a cidade (VAZ, 2022). A descoberta de um corpo animal no ambiente urbano coloca a cineasta diante do o fato de que Brasília é um tipo de ocupação de um território que já era, há muito, habitado por diversos seres, que foram sendo expulsos de suas moradias à medida em que a cidade se erguia. O corpo do tamanduá é o gatilho para a elaboração da história de um processo de ocupação de um território através da construção de uma cidade, e as contemporâneas tentativas de retomada desse território pelos animais que dela foram excluídos. Há, em É noite na América, uma consubstanciação entre a noite e o território, pois é durante a noite, na penumbra da ocupação humana, que os bichos podem tentar sua retomada da terra.

    Nas palavras da cineasta, “tento pegar essa cidade tão relacionada ao dia, à luz, ao branco, à utopia do visível e transformá-la em um lugar noturno” (VAZ, 2022). Essa colocação de Vaz que Brasília é uma cidade que encarna uma certa “utopia do visível” remonta a sua própria construção, como monumento de um tipo de pensamento “civilizatório” como dispositivo de modernização do Brasil. A fundação da modernidade filosófica e política é baseada em uma compreensão da iluminação como forma de pensamento. Ana Vaz vê uma continuidade entre a cidade de Brasília e o projeto utópico da modernidade iluminista. É preciso ver para conhecer, iluminar o desconhecido. A modernidade é uma utopia do visível e Brasília uma de suas materializações.

    A noite aparece no filme como uma crise da visualidade iluminista, que também é uma crise do regime moderno de conhecimento e modo de viver. O índice dessa crise é o surgimento daqueles que são banidos do visível, os habitantes noturnos e selvagens, que se colocam no polo oposto da grande divisão moderna que corou os humanos como centro da existência: os animais. O surgimento de animais selvagens em Brasília aponta para uma crise mais profunda da modernidade, tomado hoje em dia sob o conceito de Antropoceno. É na noite de Brasília que tal crise se apresenta, é na escuridão que o Antropoceno se faz presente.

    Mas não podemos deixar de lado o fato de que Ana Vaz utiliza o cinema como segundo operador para colocar em crise essa utopia do visível. Logo o cinema, eminentemente moderno, construído como uma arte da luz, baseado na centralidade da visão como dispositivo estético. É essa utilização do cinema como crítica de certa visualidade enquanto experiência estética que nos interessa. É possível o cinema produzir um regime de visualidade em contraposição a um regime iluminista da imagem? Haveria pistas para a construção de um conceito de visível baseado na sombra, na noite, na escuridão, que proponha distintos modos de ver no cinema, especialmente quando aliado a diferentes formas de percepção, como a dos animais?

Bibliografia

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