Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Maria Neli Costa Neves (UNICAMP)

Minicurrículo

    Doutora em Multimeios- UNICAMP, mestre em Ciência da Arte -Universidade Federal Fluminense (UFF), bacharel em Comunicação Social (cinema, jornalismo) pela UFF. Curta-metragista, editora cinematográfica, continuísta, com diversos trabalhos em cinema e televisão.

Ficha do Trabalho

Título

    O passado que continua: reflexões sobre o filme “Todos os Mortos”

Formato

    Presencial

Resumo

    Tendo como base os estudos de Lilia Schwarcz, Florestan Fernandes, Robert Stam e Muniz Sodré, essa comunicação tem como objetivo refletir sobre aspectos do filme “Todos os Mortos” (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra, destacando o enfoque na questão racial, nos privilégios das elites paulistas do final do século XIX e na persistência de uma ordem do passado nos tempos atuais.

Resumo expandido

    Apoiada em estudos de Lilia Schwarcz, F. Fernandes, Robert Stam e Muniz Sodré, essa comunicação se objetiva a refletir sobre aspectos do filme “Todos os Mortos” (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra, produção que se utiliza, em sua narrativa, de elementos da história do nosso país, evidenciando a questão racial, os privilégios das elites paulistas do final do século XIX e a persistência de uma ordem do passado nos tempos atuais.
    O relato de “Todos os Mortos” acontece, na sua maior parte, na cidade de São Paulo, no término do século XIX e passagem para o século XX. As cenas são realizadas sobretudo no interior de uma residência ampla e antiga, com foco em um momento da trajetória de três mulheres de família branca tradicional paulista (família Soares) em situação de decadência financeira, e a relação delas com ex-escravizada que é chamada de volta à casa para performar um ritual: a negra Iná.
    A família branca é composta por Dona Isabel – a mãe idosa, e suas duas filhas: Irmã Maria, religiosa que habita em um convento, e Ana, que reside com a progenitora, passa o tempo a tocar piano, enterrar objetos no jardim da casa e ver fantasmas dos antigos escravizados percorrendo os espaços da habitação. Conforme Lilia Schwarcz, o fantasma do escravismo “vira e mexe vem nos assombrar […] tal qual um fantasma perdido, sem rumo certo” (SCHWARCZ, 2019, p. 224).
    Na tela, um letreiro indica a data em que se passa a história: 1899. Os cenários, figurinos e as falas das personagens do longa-metragem se reportam a acontecimentos dessa época, criando um retrato da cidade de São Paulo do século XIX que aponta para o término da escravatura, o fim do império e o início da República brasileira. É nesse período que, segundo Schwarcz, São Paulo perde “seu caráter secundário em termos de economia nacional” e passa a representar “a negação do rural, transformando-se em monumento dessa nova urbanidade” (SCHWARCZ, 1992, p. 42).
    Imagens de operários que se movimentam construindo edificações são entremeadas com as das sinhás em conversas entre si e com a ex-empregada Iná, e estas últimas revelam nas entrelinhas- o sistema de dominação e de privilégios da elite branca paulista, sua ligação com o escravismo e com a manutenção de hierarquia racial. Para exemplificar: em uma das cenas, dona Isabel, que acaba de retornar do enterro de Josefina, antiga escrava da casa, queixa-se porque nunca mais vai poder voltar a beber o café da criada: ‘Isso é o que vou sentir mais falta!” A matriarca continua: “É tão difícil chegar em casa e não ter quem nos ajude a lavar os pés!”
    A partir de Schwarcz, é possível considerar que “o nosso passado escravocrata, o espectro do colonialismo, as estruturas de mandonismo e patriarcalismo, […] a discriminação racial, as manifestações de intolerância de gênero, sexo e religião, todos esses elementos juntos” (SCHWARCZ, 2019, p. 224), inscritos na forma de pensar e agir de nossa sociedade, continuam a existir.
    No longa, personagens afrodescendentes como Iná e Silva são vistos diante das patroas a negar a realização de práticas religiosas afro-brasileiras, mas há cenas em que Iná surge procurando afirmar o seu elo com o sagrado dos ancestrais. Isso é visível, por exemplo, quando ela guarda objetos litúrgicos de antepassados ou quando se prepara com as colegas de costura para a realização de uma festa de Quizumba no terreiro. De acordo com Muniz Sodré, a ancestralidade dos afrodescendentes dá “suporte da lei de fundação e continuidade do grupo” (SODRÉ, 2015, p. 203).
    Por fim, pode-se dizer que, ao focar um momento da vivência das personagens descritas acima, o filme “Todos os Mortos” traz para a tela contraditórias perspectivas, “vozes e discursos”, faz uma tradução de “correlações do poder social” (STAM, 2015, p. 304), e se debruça sobre parte da história do país, expondo como ela ainda persiste no nosso presente.

Bibliografia

    FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Editora Global. 2007.
    SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras.2019.
    SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: Identidade, povo, mídia e cotas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes. 2015.
    STAM, Robert. Introdução à teoria do Cinema. Campinas: Papirus Editora. 2014.