Ficha do Proponente
Proponente
- Patricia Rebello da Silva (UERJ)
Minicurrículo
- Professora associada da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do comitê de seleção das mostras competitivas do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade (ETV). Doutora (2012) e mestre (2005) em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atuação em debates, seminários e mesas com temas relacionados ao cinema documentário e à imagem.
Ficha do Trabalho
Título
- Poéticas do ensaio: precipitações de barbante em “Gunda” (2020)
Seminário
- Cinemas decoloniais, periféricos e das naturezas
Formato
- Presencial
Resumo
- Recentemente uma série de autores têm se debruçado sobre a relação entre os animais e os homens de maneira a atualizar as reflexões sobre o ambientalismo como uma nova forma de mobilização política e de engajamento. O presente trabalho opta por um recorte que privilegia pensar os processos e operações de metalinguagem do filme ensaio como “figura de barbante” (HARAWAY, 2023) na construção dessa subjetividade, tomando como ponto de partida o filme Gunda, de Victor Kossakovsky (2020).
Resumo expandido
- Recentemente uma série de autores têm se debruçado sobre a relação entre os animais e os homens de maneira a atualizar as reflexões sobre o ambientalismo como uma nova forma de mobilização política (MASSUMI, 2017; DESPRET, 2021; HARAWAY, 2022) e de engajamento comunitário. No cinema, é recorrente o tropo do animal como uma forma de mediação de formas do olhar, onde a relação entre o tempo cinemático e a vida animal dão a ver questões da própria estrutura de biopoder na qual o sujeito na contemporaneidade se descobre envolvido (a marginalização, a opressão, o trabalho escravo, o racismo, a violência às minorias, entre outros); nos domínios do que se convencionou chamar de “documentário” ao longo do século XX, encontramos essa mesma dinâmica: apenas nos termos da taxonomia de Bill Nichols (2016), elas aparecem nos filmes expositivos (O mundo do silêncio, de Louis Malle e Jacques Cousteau, 1956; Blackfish, de Gabriela Cowperthwaite, 2013), nos docs de observação (Zôo, de Frederick Wiseman, 1993; A caverna do cachorro amarelo, de Davaa Byambasuren, 2005), nos participativos (O homem urso, de Werner Herzog, 2005), nos performáticos (Bestiário, de Denis Côté, 2012; Heart of a dog, de Laurie Anderson, 2016) e, especialmente, nas reflexões enviesadas pelo ensaio (Sangue das bestas, de Georges Franju, 1949; Viva a baleia!, de Chris Marker, 1972; Amor animal, de Ulrich Seild, 1995; Professor Polvo, de Pippa Ehrlich e James Reed, 2020). O presente trabalho opta por um recorte que privilegia pensar os processos e operações de metalinguagem do filme ensaio na construção dessa subjetividade, tomando como ponto de partida o filme Gunda, de Victor Kossakovsky (2020).
O documentário acompanha o cotidiano de uma porca, Gunda, e seus filhotes ao longo dos cinco primeiros meses de vida da ninhada, quando então serão separados da mãe – seja para procriação, no melhor dos casos, ou para o abate. Filmado em grande parte em uma fazenda nos arredores de Oslo, na Noruega, onde os animais são criados em liberdade (o que significa aqui que não ficam confinados em espaços minúsculos durante seu tempo de vida), Gunda e seus filhotes dividem a cena com um grupo de galinhas desconfiadas, que analisam o perímetro da fazenda como um território minado, e um rebanho de vacas resignadas com os limites do pasto e o incômodo das moscas. Se os adjetivos emprestados nessa análise remetem a uma condição antropomórfica de fácil acesso a uma leitura de subjetividade animal (criada exclusivamente no mérito da montagem), eles potencializam aquilo que é o ponto central dessa história: o corpo ciborgue dos animais, a funcionalidade e a normatividade de vidas criadas para uso.
A noção de ciborgue, aqui, retoma a reflexão clássica e extremamente perspicaz de Donna Haraway para o termo, uma criatura de um mundo pós-gênero, e que conta da experiência feminina no final do século XX. Gunda, claro, não é uma feminista-ciborgue, mas de certa forma incorpora a noção de feminização encapsulada no sistema tempo de produtividade que delimita os processos contemporâneos: “(…) tornar-se extremamente vulnerável; capaz de ser desmontado, remontado, explorado como força de trabalho de reserva (…).”(p.69). Ao longo dos cinco meses que separam o nascimento dos leitões do momento em que são apartados da mãe, Gunda é a máquina parideira, de alimentação, proteção, cuidado, preservação e engorda dos filhotes; ao final dos cinco meses, mesmo com as tetas ainda inchadas e pingando leite, com todos os hormônios que alertam seu corpo para as funcionalidades da maternidade, ela vai ser subtraída de alguma coisa que, mesmo sem saber exatamente o que é, constitui uma falta que, física e organicamente, será sentida. E isso não faz a menor diferença. Kossakovsky comenta que, em virtude de Gunda protagonizar o documentário, foi-lhe concedido o privilégio de viver até o final de sua vida de porca. Condenada a esse circuito de funcionalidades, seria o caso pensar se se trata de sorte ou maldição.
Bibliografia
- DESPRET, Vinciane. O que diriam os animais? SP: Ubu Editora, 2021
DUVALL, John A. The environmental documentary: cinema activism in the 21st century. Londres: Bloomsbury Academic, 2017
GONÇALVES, Marco Antônio. O sorriso de Nanook: ensaios de antropologia e cinema. RJ, Mauad X, 2022
HARAWAY, Donna. Antropologia do ciborgue. BH: Autêntica, 2009
________________. ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. SP: n-1 edições, 2023
MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política. SP: n-1 edições, 2017
McMAHON, Laura & LAWRENCE, Michael (org). Animal life and the moving image. Londres: BFI, 2015
MARTIN, Nastassja. Escute as feras. SP: Editora 34, 2021
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. SP: Papirus,2016
RASCAROLI, Laura. The essay film: textual commitements. In: Framework v.49 n2, 2008
SMAILL, Belinda. Regarding life: animals and the documentary. Albany: State University of NY Press, 2016
WALDRON, Dara. New Nonfiction Film. Londres: Bloomsbury Academic, 2020