Ficha do Proponente
Proponente
- Lucas Manuel Mazuquieri Reis (USP)
Minicurrículo
- Mestrando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP (2024-atual). Bacharel em Comunicação Social – Midialogia pela UNICAMP (2017–2021). Desenvolve pesquisas nos campos de estética do cinema e cultura visual, com ênfase na investigação das relações entre memória, arquivo e processos de subjetivação. Atualmente estuda em seu mestrado as reapropriações críticas do dispositivo representacional do retrato na obra cinematográfica de Agnès Varda.
Ficha do Trabalho
Título
- Pinturas do outro, pinturas do eu: o retrato do artista em Tio Yanco
Formato
- Presencial
Resumo
- Este trabalho busca compreender as dimensões retratísticas do curta-metragem “Tio Yanco” (1967), de Agnès Varda. Pensa-se aqui o retrato como imagem produzida em uma troca intersubjetiva, situando-se num limiar constituído entre retratista e retratado. O filme tece contatos entre o retrato e o autorretrato ao colocar a cineasta dividindo o campo da tela com seu modelo, Jean Varda, que, por sua vez, tem elementos de sua estilística pictural incorporados na mise-en-scène de seu retrato fílmico.
Resumo expandido
- Este trabalho busca compreender as dimensões retratísticas do curta-metragem “Tio Yanco” (1967), de Agnès Varda.
Nossa proposta parte de uma reflexão fundada nas teorias do retrato pictórico e fotográfico, aqui considerado como uma condensação de imagens-memória e representações plurais do sujeito consolidadas na imagem pelo encontro com o caráter artístico do retratista. Nesta seara, o retrato pode se revelar como processo de construção imagético produzido a partir da troca intersubjetiva, situando-se num limiar entre o retrato e o autorretrato (BRILLANT, 2008; VAN ALPHEN, 2011).
O retrato cinematográfico, em específico, operaria com uma dupla moldura espaço-temporal na qual a exposição do sujeito se desloca nas sucessões da duração, reunindo na imagem a exterioridade fisionômica do sujeito e a interioridade de seu movimento anímico, assim restituindo a temporalidade da representação retratística como materialidade sensível ao espectador; esta qualidade variável da temporalidade permitiria ao retrato cinematográfico manifestar, por vezes, um sujeito fragmentado, tateante e difratado num conjunto de imagens (OLIVEIRA JR., 2017; BELLOUR, 1997).
Em seu estudo sobre o conceito vardaniano de “cinescritura”, Nathalie Mauffrey (2022) reconhece um papel fundamental da “tradição da comparação entre as artes” (p. 27) na constituição da carreira cinematográfica de Varda: ela operaria com uma “poética de confluência”, emprestando práticas das outras artes para tecer reflexões sobre “o poder das imagens” e articular elementos díspares entre “o mundo e a intimidade da cineasta, o real e o imaginário, o documentário e a ficção” (Ibid., p. 07). Dentre as tradições estéticas e formas culturais recuperadas por Varda poderíamos dar destaque ao retrato, através do qual a artista instituiria um dispositivo baseado no olhar e na produção de semelhança que permite, simultaneamente, revelar algo sobre o modelo e a cineasta que produz suas imagens (RIAMBAU, 2009).
“Tio Yanco” seria descrito por Agnès Varda (1994) como um “retrato-reportagem” de seu tio, Jean Varda. O curta-metragem se apresenta como um ponto de virada na sua obra fílmica: é a primeira vez que sua presença corporal diante da câmera lhe dá a espessura de personagem. Seria possível conectar este dado a um certo reconhecimento da prática retratística como campo de encontro intersubjetivo, onde a presença do retratista é reconhecida como elemento central do projeto, que complexifica e tensiona o processo de produção da imagem do retratado. Esse entrelaçamento se revela particularmente nas mesclas de vozes da narração off, no emprego lúdico de fabulações da autora sobre o tio e nos jogos de repetições composicionais que enquadram de forma semelhante a retratista e o retratado.
Ao mesmo tempo, seria possível reconhecer um jogo complexo de introjeções e amálgamas no qual a composição do retrato fílmico do artista plástico incorpora em sua forma elementos da estilística do seu modelo, de modo que a mise-en-scène de Varda é transformada pelo contato com a arte de Yanco — como se nota na predominância de cores primárias sólidas e na colagem de materiais heteróclitos que marcam tanto o filme quanto os trabalhos plásticos do artista que é seu assunto. O retrato revela-se, aqui, não apenas uma produção de imagens à semelhança do sujeito representado, mas um compósito heterogêneo de elementos do artista e de sua obra, reconhecidamente atravessados e transformados pelo olhar da cineasta-retratista que os re-apresenta no meio fílmico.
Essas tomadas de posição apontam para uma dimensão transindividual da criação cinematográfica, irredutível a uma certa tradição que pensaria o autor como origem única do sentido da obra (AUMONT, 1996). Nem jogo de entrelaçamentos, Varda se coloca em tela assumindo uma posição reflexiva que destaca as inflexões do artista no processo de representação retratística, expondo a transformação de sua subjetividade em devir neste contato com o outro (YAKHNI, 2014).
Bibliografia
- AUMONT, J. Du visage au cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1992.
AUMONT, J. Confluences ou quand créer c’est ne pas être seul. In: AUMONT, J (org). Pour un cinéma comparé. Paris: Cinémathèque française, 1996.
AUMONT, J. O olho interminável. São Paulo: CosacNaify, 2011.
BELLOUR, R. Entre-imagens. Campinas: Papirus, 1997.
BÉNÉZET, D. The cinema of Agnès Varda. Londres: Wallflower Press, 2014.
BRILLIANT, R. Portraiture. Londres: Reaktion Books, 2008.
MAUFFREY, N. La cinécriture d’Agnès Varda. Provença: PU Provence, 2022.
NANCY, J.-L. Portrait. Nova York: Fordham UP, 2018.
OLIVEIRA JR., L. Retratos em movimento, ARS, [S.L.], v. 15, n. 31, 2017.
RIAMBAU, E. La caméra et le miroir. In: FIANT, A. et al (orgs.). Agnès Varda – le cinéma et au-delà. Rennes: PU Rennes, 2009.
VAN ALPHEN, E. The portrait’s dispersal. In: MOSQUERA, G. (ed.). Interfaces. Madrid: La Fabrica, 2011.
VARDA, A. Varda par Agnès. Paris: Cahiers du Cinéma, 1994.
YAKHNI, S. Cinensaios de Agnès Varda. São Paulo: Hucitec, 2014