Ficha do Proponente
Proponente
- Michiko Okano (Unifesp)
Minicurrículo
- Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é professora de graduação e pós-graduação do Departamento de História da Arte da Unifesp; professora colaboradora na pós-graduação do Centro de Estudos Japoneses da USP e coordenadora do Grupo de Estudos Arte Ásia. É autora de Ma: entre espaço de arte e comunicação no Japão (2011), Helena e Riokai: Japão e Brasil, Paris (2023), além de vários artigos e capítulos de livros. Foi curadora de exposições de artistas nipo-brasileiros como Transpacific
Ficha do Trabalho
Título
- Espacialidades, temporalidades e natureza em An – Sabor da Vida
Mesa
- Do “espaço negativo” ao “espaço sideral”
Formato
- Presencial
Resumo
- A maior parte dos filmes japoneses tem um ritmo lento, contemplativo, em que as cenas de deslocamentos ou daquelas que supostamente nada acontecem, são longas. Tais espacialidades possuem relevância, e marcam, por exemplo, as mudanças temporais da diegese, que são aqui estudadas a partir da concepção do Ma na obra Sabor da Vida de Naomi Kawase. Outro foco apresentado é a relação homem-natureza que é abordada a partir dos conceitos de alguns pensadores japoneses como K. Minakata e K. Imanishi.
Resumo expandido
- Naomi Kawase é uma diretora japonesa de renome internacional que tem como temática os relacionamentos humanos, as conexões entre vidas, muitos deles em situações extremas. Em Sabor da Vida (2015), Kawase ressalta a relação entre Sentarō, dono de uma loja de dorayaki (tipo de panqueca recheada com an), e Tokue, uma senhora idosa, acometida de hanseníase, que oferece o seu trabalho para a loja. Tais personagens, acompanhados pela jovem Wakana, são de alguma forma marginalizados da sociedade na qual reinam preconceitos e humilhações, mas crescem entre eles, sentimentos de afetividade.
A mão mágica de Tokue na elaboração de an faz com que Sentarō aceite a sua ajuda. O modo como a diretora filma e descreve o processo de produção da iguaria revela a relação ímpar de Tokue com azuki, em uma temporalidade lenta, nos seus longos 8 minutos e 30 segundos, cujos grãos de azuki são tratados como possuidores de almas. Precisariam ser cuidados com omotenashi (hospitalidade e atenção plena), porque eles “fizeram o favor” de se deslocar da lavoura até a loja. Revela a gratidão para com o cereal por se oferecer para o nosso consumo: os japoneses usam a palavra tabesasete moratteiru que, embora com difícil tradução, significa que “nós humanos estamos recebendo a dádiva que nos permite alimentarmo-nos da energia vital” dos cereais.
Essa relação de vegetais e seres humanos refletem os pensamentos de Shoko Yoneyama, Kinji Imanishi e Kumagusu Minakata que trazem a noção não hierarquizada entre os seres vivos, o pensamento de que “nosso mundo consiste em uma enorme variedade de vidas” (IMANISHI): homens, plantas, rochas e azuki…
Alguns elementos da natureza como a cerejeira, o céu e o vento, bem como os deslocamentos espaciais dos personagens tornam-se primordiais para a nossa análise do Ma. Os protagonistas são introduzidos no filme por meio de trajetos em que eles percorrem. Vemos inicialmente, Sentarō na sua caminhada cotidiana da residência para a loja de dorayaki; tendo subido a escada, a câmera é direcionada à paisagem de flores de cerejeira, momento em que ele se senta e contempla o céu e as flores. Neste momento, ouvimos a música, destacando serem estes elementos da natureza primordiais para a narrativa. A aparição de Tokue se faz pela sua travessia do cruzamento da linha férrea até a loja de dorayaki, e, ao chegar perto do estabelecimento, ela contempla, assim como Sentarō, as flores de cerejeira que balançavam ao sabor do vento.
Identificamos o Ma como marcador de fases da diegese por intermédio de três elementos relevantes na obra: o céu, que é o signo de transformações constantes, a cerejeira, símbolo da efemeridade e o vento, do deslocamento e movimento. E algumas destas cenas podem ser consideradas como espacialidades intervalares de suspensão da narrativa fílmica, algo similar ao que Deleuze chama de “situações óticas puras” que “põem os sentidos liberados em relação direta com o tempo, com o pensamento” (1985, p. 28).
O filme pode ser dividido em três partes. A primeira apresenta a conquista e o progresso do trabalho de Tokue na loja, que se inicia com o céu e a cerejeira acima descritos no deslocamento de Sentarō. Na segunda parte, instala-se a crise semeada pelos preconceitos em relação à doença de Tokue e o consequente afastamento de uma clientela e, no início desta fase, o céu que marcara o deslocamento de Sentarō no início do filme é retomado (1:11): um céu com a lua quase cheia atravessado por nuvens cinzas.
Na terceira parte, mostram-se Sentarō e Wakana que procuram Tokue na vila destinada aos acometidos por hanseníase, seguindo-se a sua morte. O vento e a cerejeira são mostrados junto à figura de Tokue, que já não pertence a “este mundo”. As árvores de cerejeira que aparecem no início do filme voltam no final da obra, completando assim o ciclo das estações do ano, da vida e morte, e também do renascimento.
Bibliografia
- DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
OKANO, Michiko. Ma: o entre-espaço da arte e comunicação no Japão. São Paulo: Annablume, 2011.
FUJITA, Masakatsu. “Caminhos para a cultura e o pensamento japonês”. In: AVANCINI, Atilio; HASHIMOTO, Madalena; OKANO, Michiko. Conceitos Estéticos: do transtemporal ao espacial na arte japonesa. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo, 2021. Trad. De Plínio Ribeiro Júnior. P.175-188.
IMANISHI, Kinji. A Japanese view of Nature: The world of living things. Tradução: Pamela J. Asquith, Heita Kawakatsu, Shusuke Yagi, Hiroyuki Takasaki. Londres: Routledge Curzon, 2002.
KUMAGUSU, Minakata. Minamikata Mandara. (Mandala de Minamikata). Tokyo: Kawade Bunko, 1991.
YONEYAMA, Shoko. Animism in Contemporary Japan: voices for the Anthropocene from post-Fukushima Japan. Londres: Routledge Contemporary Japan Series, 2019.