Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Camilo Soares (UFPE)

Minicurrículo

    Fotógrafo, cineasta e professor de Cinema na UFPE, doutor pela Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Dirigiu e fotografou filmes como Muribeca (2020, com Alcione Ferreira), Céu de Lua, Chão de Estrelas (2022, com Orun Santana) e Ming (2022). Fez a direção de fotografia de filmes como King Kong em Asunción (prêmio de melhor filme no Festival de Gramado de 2020). Publicou, entre outros, Contágio (2023), Palavras Sujas Sobre Azulejos Brancos (2022), L’espace immatériel dans le cinéma de Jia Zhangke (2020).

Ficha do Trabalho

Título

    A fuga das imagens na geopoética da lama

Seminário

    Estética e plasticidade da direção de fotografia

Formato

    Presencial

Resumo

    Ao denunciar a catástrofe ambiental trazida pelas máquinas do desenvolvimento, Davi Kopenama relata que até as imagens dos animais da floresta fogem enfurecidas para longe, dando à estética um importante papel regulador entre ser humano e natureza. Nas imagens de alguns filmes, tal visão encontra a geopoética da lama, quando atua como um ponto de tensão entre estresse social e questão ambiental, trabalhando a materialidade da lama para propor uma experiência política de estar no mundo.

Resumo expandido

    Buscamos nesse trabalho a comunicação entre o conceito yanomani de fuga das imagens e a geopoética da lama, para entender a riqueza expressiva da substância plástica da lama/barro para expressar a realidade brasileira. Partimos da capacidade da lama de, ao mesmo tempo, ser índice de várias consequências da crise ambiental e social (destruição de florestas e rios, alagamento, desmoronamento de encostas, falta de saneamento e asfalto, moradias em palafitas, genocídio de povos originários e ribeirinhos, etc.), desnaturalizando, assim, o racismo ambiental que as acompanha, além de apresentar a capacidade estética de propor reflexões, mudar sensibilidades, angariar consciências e instigar ações. Dessa forma a leitura de tal substância se torna ambivalente, partindo da negatividade de sua indicialidade e simbologia para encontrar a positividade de poder expressar resistências, memórias e mudanças. Na cinematografia, esse princípio estético pode se tornar uma possibilidade estética interessante para integrar um olhar político na expressão do real.
    Ao denunciar a violenta crise ambiental trazida pelas máquinas do desenvolvimento, que transforma árvore em capim e rios em córregos lamacentos, Davi Kopenawa, seguindo o pensamento yanomani, relata que até as imagens dos bichos fogem enfurecidas para longe, dando à estética um importante papel regulador para a relação entre ser humano e natureza. Tal visão encontra a geopoética da lama quando alia, como esta, uma visão fenomenológica que rompe com o dualismo moderno ocidental entre ser humano e natureza para reavaliar a materialidade na lama como forma de vivência imanente e subjetiva. Nas imagens de um filme, tal conceito estético pode atuar como um ponto de tensão entre situação social e estresse ambiental, ultrapassando os limites da ilustração e do mero simbólico para propor uma experiência política de estar no mundo.
    Para Davi Kopenawa, a contemplação das imagens é, portanto, fundamental para se estabelecer o elo direto e ininterrupto entre ser humano e mundo. Na crise atual causada pela separação entre humano e natureza, Kopenawa lembra que a perda da essência de pertencimento com a natureza e o contato direto com nossos espaços é também a perda das imagens dos seres que compõem a essência do mundo, o que, de certa forma, desobjetifica o status da imagem, retirando-a de um estado de passividade: “A caça morreu ou fugiu para bem longe, nas serras. […] As imagens desses bichos, enfurecidas, fugiram para longe de lá, chamadas de volta pelos outros xapiri.”. (Kopenawa & Albert, 2015, p. 469)
    Ao expressar o rompimento com essa cosmologia, a imagem cinematográfica encontra na lama de alagados e mangues rastros dessas imagens fugidias, assim como sinais dessa possível revolta e autonomia através da estética e sua expressões culturais, psicológicas e históricas. Ao abordar através de enquadramentos, volume, textura e luz a câmera expõe tanto sua vasta simbologia como a plasticidade de sua substância, a fotografia de filmes pôde encontrar a violência do subdesenvolvido buscado por Glauber Rocha, como potência política do devir, amarrando política e estética ao se afastar do exotismo e do pitoresco (Rocha, 1965, p. 1).
    Dessa forma, buscaremos aqui abordar a relação da riqueza semântica e plasticidade da geopoética da lama em contato com a visão dinâmica da tradição yanomami em relação à imagem e à contemplação, buscando compreender como essa mudança de leitura sobre a imagem imagem, nessa perspectiva autônoma e revoltada, pode acrescentar ao cinema uma força expressiva e criadora de significados. Portanto, buscamos também observar como o cinema pode traduzir, através da direção de fotografia, uma forma política e decolonial de retratar a complexidade brasileira a partir da potência criadora e transformadora da lama, diante da perspectiva dessa imagem-sujeito.

Bibliografia

    CASTRO, Josué de. (1967) Homens e Caranguejos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
    COLLOT, Michel. (2013) Poética e filosofia da paisagem. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, E-book.
    DUSSEL Enrique. (1993) 1492 – o encobrimento do outro: A origem do mito da modernidade. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: vozes.
    Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. trad. Beatriz Perrone-Moisés. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.
    Merleau-Ponty, Maurice. (1994) La Nature. Paris: Seuil.
    ROCHA, G., Uma Estética da Fome, 1965. Vermelho (visto em 19/11/2023): https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/leia-a-integra-do-manifesto-uma-estetica-da-fome-de-glauber-rocha/

    Filmes
    Brasil S/A (Marcelo Pedroso, 2014)
    Céu de Lua, Chão de Estrelas (SANTANA, Orun et SOARES, Camilo, 2022).
    Febre do Rato (ASSIS, Cláudio, 2011).
    Os homens do caranguejo ou a propósito de Livramento (PONTES, Ipojuca, 1968).
    Recife de dentro pra Fora (MESEL, Katia, 1997).