Trabalhos aprovados 2024

Ficha do Proponente

Proponente

    Juliana Froehlich (Sem vínculo instituc)

Minicurrículo

    Juliana Froehlich é psicanalista, psicóloga, professora e pesquisadora. Doutora em Cinema pela University of Antwerp (Bélgica)/ CAPES, Mestre em Estética e História da Arte pela USP/CAPES e psicóloga formada pela USP (2010). Atualmente desenvolve pesquisas sobre o real e o traumático entre cinema e artes visuais e práticas experimentais nessas mesmas linguagens. E atende na clínica com orientação de psicanálise lacaniana.

Ficha do Trabalho

Título

    O cinematógrafo de Bresson, a repetição, o real e o trauma.

Formato

    Presencial

Resumo

    Este trabalho propõe pensar o quadro, a montagem e os modelos bressonianos a partir das noções de repetição e real no Seminário 11 de Lacan. O cinematógrafo de Bresson é marcado pelas suas escolhas formais. Como método para secar o drama, Bresson fazia com que seus modelos repetissem o texto até que a fala ficasse mecânica e o modelo se tornasse um ‘autômato’. Tais escolhas estéticas apontam uma tentativa de transmitir aquilo que “manca” como diz Lacan (1964), transmitir o encontro do real.

Resumo expandido

    O trauma desenha marcas que tendem a voltar várias vezes. A repetição, por vezes, insiste tanto que o sujeito se pergunta se “a mesma coisa” não cansa de retornar. Qual seria “a mesma coisa”, que não cessa de tentar se inscrever? Lacan no seminário 11 diz: “A repetição aparece primeiro em uma forma que não é clara, que não é espontânea, como uma reprodução, ou uma presentificação em ato.” (Lacan, 1964, p. 52). Segundo Lacan, a repetição aparece no início de uma análise em ato e, pelo processo de rememoração, a repetição se torna um ato. Uma vez que a rememoração seria a fantasia do passado que se refaz no presente (Safatle, 2014). A imagem de uma espiral que possui um centro e parece fazer sempre a mesma volta, ajuda a dar sentido ao que se repete, pois há algo que se repete, mas a cada volta que faz, se faz de uma maneira diferente. Lacan conjuga a repetição em dois conceitos: o autômaton e a tiquê. O autômaton faz referência a função da rede de significantes e a tiquê ao encontro faltoso do real, esse acidente que emerge nas lacunas que o autômaton tenta ‘recobrir’, encobrir ou dar sentido. Safatle (2014) nos lembra que repetir é (e)laborar para Lacan no sentido em que o que se repete é de uma experiência do real (não de realidade) e no processo de análise se trata de atravessar a fantasia com a fantasia, isto é, “atravessar uma cena que coloniza o sujeito” (Ibidem, p.57) .
    Neste sentido, Robert Bresson (1901-99) parece ter intuitivamente utilizado como forma estética a repetição exaustivamente para que algo do registro do real surgisse no movimento do filme, que aparecesse nos gestos, olhares, sons e pequenas variações nas falas das personagens. Parece também que ‘sacou’ que haveria uma forma simbólica que colonizara o cinema, o teatro filmado. Bresson criou uma estética cinematográfica própria, o cinematógrafo, e marca a diferença desta com o cinema teatral, a partir de escolhas formais com atores, câmera, música e montagem, aproximando-se mais do aspecto maquínico e automatizado do cinema ao mesmo tempo em que abre para que algo do real, e por vezes do traumático, emerja.
    Ele filmava somente com lente objetiva de 50mm, com a intenção de aproximar o quadro à medida humana, mantinha o mesmo “tipo de imagem” (BORGES, 2011, p. 16). O enquadramento ao mesmo tempo que fragmenta elementos dos corpos e dos objetos, une corpos, objetos e animais. O quadro se faz como o sujeito que olha e é olhado. Diz Bresson: “montar é ligar pessoas umas às outras e aos objetos pelos olhares.” (BRESSON, 2005, p. 24). A montagem articula e anima os fragmentos, imagens e cenas propostos pelo quadro como a fala e a escrita. Como a fala do sujeito que liga significantes em torno do real (FOSTER, 2008). Nessa direção, de maneira coerente, Bresson insere pontualmente poucas músicas, já que o ambiente produz seus próprios ruídos musicais, como se fosse possível, pelo som, indicar a tiquê. Como em Lancelote do Lago (1974) em que as armaduras e os cavalos têm mais presença na banda sonora que as falas das personagens ou no Processo de Joana D’arc (1962) o som das algemas marca o peso de seu destino.
    Como método para retirar o drama teatral, Bresson só filmava com o que chamou de modelos, uma referência à pintura. Fazia com que seus modelos repetissem o texto até que a fala ficasse mecânica, automática e o modelo se tornasse um ‘autômato’. Nesse incessante repetir, rememorar, repetir, rememorar o texto pelo texto, o modelo produz falas com pouca variação tonal, de maneira que uma variação surge de maneira atravessadora, como aquilo “que é diferente”, produz uma diferença visível e audível, muitas vezes tátil. Bresson escreve: “Modelo, sua permanência: sempre a mesma maneira de ser diferente” (BRESSON, 2005, p. 45). Bresson cria fantasias para atravessar a fantasia do cinema, como que numa busca de transmitir experiências “do real” com a máquina do cinema, o que pediria condições para que algo do real se inscreva no movimento de cada filme.

Bibliografia

    BORGES, C. Entre o aprisionamento e a fuga. In: IFANGER, D. (et al) (orgs.). Robert Bresson. São Paulo: Cinusp/Centro Cultural São Paulo, 2011, p.10-16.
    BRESSON, R. Notas sobre o cinematógrafo. Editora Iluminuras Ltda, 2005, p. 24.
    FOSTER, H. O retorno do real. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
    FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. In: Obras Completas v.10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (E-book)
    LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1964/1998.
    SAFATLE, V. O devedor que vem até mim, o Deus que aposta e os amantes que se desencontram: a construção do conceito lacaniano de repetição. In: FINGERMANN, D. (org.). Os paradoxos da repetição. São Paulo: Annablume 2014, p. 55-80.
    SAULE, P. Le mécanisme du corps comme manifestation de l’essence pure chez Robert Bresson. Entrelacs. Cinéma et audiovisuel, n. 5, p. 73-77, 2005.