Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Erly Milton Vieira Junior (UFES)

Minicurrículo

    Erly Vieira Jr é Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ (2012), com pós-doutorado em Cinema no PPGCINE-UFF (2020). É professor no Departamento de Comunicação Social da UFES, na área audiovisual. Também é coordenador do grupo de pesquisa Comunicação, Imagem e Afeto (CIA). Autor dos livros Plano Geral: Panorama histórico do cinema no Espírito Santo (2015), Realismo sensório no cinema contemporâneo (2020) e Rasuras: 40 anos de vídeo experimental no Espírito Santo (2021), entre outros.

Ficha do Trabalho

Título

    De cidades submersas, bichas-paponas e vales encantados: videoensaio

Seminário

    Tenda Cuir

Formato

    Presencial

Resumo

    Sob a forma de um videoensaio, pretende-se aqui inventariar e investigar, dentro do audiovisual contemporâneo capixaba, feito por e para pessoas LGBTQIA+/cuir, possíveis pontos de contato que apontem para estratégias de engajamento sensório diferenciadas, convidando suas audiências a experimentarem corporalmente os modos de existência cuir neles retratados, bem como suas temporalidades, espacialidades e dinâmicas fabulatórias diante da ausência/precariedade dos arquivos imagéticos oficiais.

Resumo expandido

    A quem vive numa ilha e não cabe na norma, resta o mar. Na impossibilidade financeira de embarcar rumo às grandes capitais, a comunidade LGBTQIA+ capixaba escolheu construir, aqui mesmo, suas próprias cidades submersas: espaços de vivência coletiva (muitas vezes sob laços de kinship/cuirparentalidade), nos quais modos de existir dissidentes foram esteticamente experimentados, ao sabor de outras temporalidades e espacialidades, na potência de suas precariedades e desejos fabulatórios.

    De tempos em tempos, essas atlântidas afloravam pela ilha de Vitória (ou do próprio Espírito Santo que, metaforicamente, também é uma ilha), instaurando heterotopias atrevidas a partir de performances desidentificadas: os desfiles de moda organizados pelas travestis num clube militar durante a ditadura; o programa infantil de Vovó Bina, verdadeira performance drag na TV aberta oitentista; um happening/cerimônia de casamento (1977) de dois artistas gays, numa galeria que funcionava numa igreja do século XVI; os poemas que a bicha-papona Waldo Motta recitava nas ruas, com sua releitura homoerótica dos simbolismos bíblicos em torno da sacralidade do cu. E a boate Eros, delicioso inferninho situado na região portuária, onde conviviam bichas, sapatões, trans, travestis e demais sereias de todas as classes sociais, com um elenco transformista comandado pela própria Vovó Bina!

    Os shows de lip sync no palco da Eros também foram registrados em fitas VHS caseiras, resgatadas no filme-ensaio Cartas para Eros (Herbert Fieni, 2016), que inventaria parte dessas histórias a partir de um contrato háptico peculiar, como quem deseja tocar essas imagens e reter seus afetos na própria pele que um dia vibrou naquela pista de dança ao som da house music.

    Há também narrativas que não foram filmadas em suas épocas, mas precisavam ser contadas. Suas fabulações requerem outras estratégias sensórias, capazes de convidar corporalmente as plateias contemporâneas, como o falso found footage em VHS que conduz os vínculos da provisória família cuir durante o início da pandemia da Aids nos anos 80, em Os primeiros soldados (Rodrigo de Oliveira, 2022). Ou o retrato imaginário de uma infância transmasculina, que requer superpoderes para executar certas tarefas cotidianas, em O pássaro sem plumas (Tati Rabelo e Rodrigo Linhales, 2019). Ou ainda a temporalidade e espacialidade cuirizadas que reimaginam, na distante Guerra do Paraguai, o encontro de personagens não-heterocisnormativos numa comunidade cigana, em Procuro teu auxílio para enterrar um homem (Anderson Bardot, 2023). Inventários de cidades invisíveis: na ausência do arquivo, cabe a especulação a partir das lacunas.

    Em outros filmes recentes, o foco é falar do aqui e agora. Não mais espaços submersos, mas sim floridos “vales encantados” (uma referência ao bairro periférico vilavelhense do qual é originária a produtora homônima de Bardot), enclaves de existência e experimentação cotidiana cuirizada. Entre suas estratégias sensórias, destaco o viés háptico do devir drag em Montação (Wan Viana, 2016); a câmera-corpo de Inabitáveis (Anderson Bardot, 2020), cuja coreografia dialoga com o falso-raccord de Maya Deren; os autorregistros cotidianos dos processos de transição de gênero de Izah e Murilo em Transvivo (Tati Franklin, 2017); o rebuceteio cantado nos videoclipes de Roberta de Razão. E o corpo em combustão, que performa pulsante de desejo e mistério, em A cambonagem e o incêndio inevitável (2021), de Castiel Vitorino Brasileiro, nascida na Fonte Grande, maciço central da ilha, local onde brota toda a água – e transmutada em peixe/sereia em Me faça um pedido (2020).

    Nesse Vale das Encantadas, essas imagens desafiam o tempo inteiro a mesquinhez ilhéu com sua plenitude. “Eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo”, já dizia Rose em Os primeiros soldados, “e o que a gente faz é tentar sobreviver sendo linda”. E são as possíveis afinidades multissensórias entre esses filmes que este videoensaio pretende investigar.

Bibliografia

    AHMED, Sara. Queer Phenomenology: orientations, objects, others. Durkham/London: Duke University Press, 2006.
    BRADWAY, Tyler; FREEMAN, Elizabeth. Queer Kinship: Race, sex, belonging, form. Durham/London: Duke University Press, 2022.
    BRAGANÇA, Lucas. Desaquendando a história drag no mundo, no Brasil e no Espírito Santo. Vitória: Edição do autor, 2018.
    BRASILEIRO, Castiel Vitorino et al. Eclipse. New York: CCS Bard/Hessel Museum of art, 2021.
    FREEMAN, Elizabeth. 2010. Time binds: Queer temporalities, queer histories. Durham/London: Duke University Press.
    MOTTA, WALDO. Bundo e outros poemas. Campinas: Ed. Unicamp, 1995.
    MUÑOZ, José Esteban. Disidentifications: queers of color and the performance of politics. London: University of Minnesota Press, 1999.
    VIEIRA JR, Erly. “Atrevid@s e resistentes: Um olhar queer sobre as artes e o cinema no Espírito Santo”. In: Exercícios do olhar, exercícios do sentir: ensaios e críticas sobre artes visuais. Vitória: Cousa, 2019.