Ficha do Proponente
Proponente
- Susana Dobal (UnB)
Minicurrículo
- Susana Dobal é professora na Univ. de Brasília (UnB). Doutorado na CUNY/GC, pós doc na Univ. Paris 8 e na Aix-Marseille Université (AMU). Publicou o livro Peter Greenway and the Baroque: writing puzzles with images (2010); organizou os livros Fotografia Contemporânea: fronteiras e transgressões com Osmar Gonçalves (2013) e A Paisagem com narrativa com Rafael Castanheira (2022); publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte contemporânea. Tema de pesquisa: narrativas e experimentações visuais.
Ficha do Trabalho
Título
- Maíra, A Última Floresta e A Febre: reflexos da questão indígena
Seminário
- Cinema Comparado
Formato
- Presencial
Resumo
- Entre as diversas nuances da questão indígena ao longo da história, pode acontecer de ela se refletir em obras cujas afinidades revelam uma configuração particular desse tema. Ao comparar o romance Maíra de Darcy Ribeiro, e os filmes A Última Floresta e A Febre, sob o filtro do perspectivismo ameríndio exposto por Viveiros de Castro e do livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, o artigo investiga reincidências reveladoras da percepção indígena e não-indígena encenadas nas obras.
Resumo expandido
- A ruptura com uma explicação causal e teológica da história revela descontinuidades e afinidades que propõem novas séries, novas analogias não necessariamente ligadas por requisitos cronológicos e nem por isso menos frutíferas na sua capacidade de apontar reincidências e transformações discursivas. Quando colocamos lado a lado três obras que tratam da questão indígena no Brasil em um terreno fluido que une ficção, antropologia e documentário, sendo elas o romance Maíra, de Darcy Ribeiro (1976), e os filmes A Última Floresta (2021), de Luiz Bolognesi e A Febre (2019), de Maya Da-Rin, enxergamos tanto as afinidades entre essas obras, como o quão distantes estamos do século XIX das fotografias antropológicas que fizeram do corpo colonizado um objeto de estudo, e da idealização do bom selvagem dos romances e da pintura.
O olhar ainda é externo, não abordamos aqui as produções realizadas pelos indígenas, mas há um desejo de aproximação e empatia com visíveis consequências para o próprio discurso, que precisa ser abrandado para melhor se adaptar ao seu conteúdo. Avá, personagem do romance de Darcy Ribeiro, quer traduzir a bíblia em termos que sejam compreensíveis ao seu povo, mas a linguista esposa do missionário censura essa adaptação. Ela é como o romancista, o pintor ou o fotógrafo do século XIX, incapaz de se colocar no lugar do outro e renunciar às suas prerrogativas ao retratar o indígena compatível com os moldes previstos pela literatura, pela pintura e pela ciência de então. O antropólogo romancista e os cineastas em questão estão mais próximos de Avá, traduzem a questão indígena para o seu povo não-indígena, e procuram adaptar a linguagem do romance e do cinema ao propósito de perceber menos como o outro é do que como o outro percebe, ou seja, como o ser do outro se revela no ser da sua percepção. Trata-se ainda de despertar empatia pelo indígena, um propósito evidente na literatura e na pintura do século XIX, porém o fascínio implícito e detonador do olhar do não-indígena tem outras motivações. Ele é movido tanto pela nostalgia de uma fusão com a natureza quanto pela curiosidade por uma forma de conceber o mundo desprovida das amarras da racionalidade. No entanto, por mais contaminado que esteja esse olhar pelo que deve ser sanado pela figura do indígena, a crueza do contato e a ferida aberta pelo encontro, ou desencontro, entre culturas diferentes não são dissimulados.
Os escritos de Eduardo Viveiros de Castro (2014) sobre o perspectivismo indígena nos ajudam a compreender como o pensamento ameríndio desconhece a hierarquia entre o humano e o não-humano que rege o pensamento ocidental, a começar pelo fato de que na cosmologia indígena os humanos podem se identificar com animais, como bem exemplificado no romance do Darcy Ribeiro, e há ainda uma concepção ameríndia dos não-humanos como sendo humanos na sua aldeia e organização própria – é o que sugere o irmão de Justino, no filme A Febre, sobre o ataque de uma criatura ainda não identificada noticiado no jornal televisivo, ao comentar que pode não ser um animal, mas algo como uma roupagem de animal para outro ser. Também o livro A Queda do Céu, escrito por Davi Kopenawa e Bruce Albert, trouxe compreensão mais aprofundada da cosmologia yanomami e da maneira como a ameaça que paira sobre os yanomami foi assimilada em termos míticos. Os reflexos disso podem ser vistos nas obras consideradas nesse artigo, especialmente no filme A Última Floresta, um misto de documentário e ficção que conta com Davi Kopenawa como condutor da narrativa explicitamente inspirada no livro do xamã yanomami e do antropólogo francês, conforme relata o diretor Luiz Bolognesi (2021). A análise das três obras em questão vai se apoiar nesses autores para desvendar as afinidades entre o romance do antropólogo, o documentário que não se furta a encenar mitos e o filme de ficção visto por estudantes indígenas da UFSCar, que se espelharam no personagem do Justino, no filme A Febre (BORGES, 2021)
Bibliografia
- BORGES, Vanessa Carneiro. Que febre é essa? Olhares indígenas sobre o filme “A Febre” . InformaSUS, UFSCar. São Carlos, SP. 7.5.21. https://informasus.ufscar.br/que-febre-e-essa-olhares-indigenas-sobre-o-filme-a-febre/ Acesso: 20 abr 2023.
BOLOGNESI, Luiz. A Última Floresta: os rituais da ancestralidade indígena na Berlinale. Entrevista concedida a Rodrigo Fonseca. C7Cinema, 11.2.21. https://c7nema.net/entrevistas/item/94376-a-ultima-floresta-os-rituais-da-ancestralidade-indigena-na-berlinale.html Acesso: 20 abr 2023.
FOUCAULT, M. “Os fatos comparativos”. In: ____. A arqueologia do saber. 8ª ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2013.
KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
STAM, Robert. Indigeneity and the Decolonizing Gaze: transnational imagery, media aesthetics and social thought. London, Bloomsbury Academic, 2023.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. São Paulo: Cosac Naify, 2014.