Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Susana Dobal (UnB)

Minicurrículo

    Susana Dobal é professora na Univ. de Brasília (UnB). Doutorado na CUNY/GC, pós doc na Univ. Paris 8 e na Aix-Marseille Université (AMU). Publicou o livro Peter Greenway and the Baroque: writing puzzles with images (2010); organizou os livros Fotografia Contemporânea: fronteiras e transgressões com Osmar Gonçalves (2013) e A Paisagem com narrativa com Rafael Castanheira (2022); publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte contemporânea. Tema de pesquisa: narrativas e experimentações visuais.

Ficha do Trabalho

Título

    Maíra, A Última Floresta e A Febre: reflexos da questão indígena

Seminário

    Cinema Comparado

Formato

    Presencial

Resumo

    Entre as diversas nuances da questão indígena ao longo da história, pode acontecer de ela se refletir em obras cujas afinidades revelam uma configuração particular desse tema. Ao comparar o romance Maíra de Darcy Ribeiro, e os filmes A Última Floresta e A Febre, sob o filtro do perspectivismo ameríndio exposto por Viveiros de Castro e do livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, o artigo investiga reincidências reveladoras da percepção indígena e não-indígena encenadas nas obras.

Resumo expandido

    A ruptura com uma explicação causal e teológica da história revela descontinuidades e afinidades que propõem novas séries, novas analogias não necessariamente ligadas por requisitos cronológicos e nem por isso menos frutíferas na sua capacidade de apontar reincidências e transformações discursivas. Quando colocamos lado a lado três obras que tratam da questão indígena no Brasil em um terreno fluido que une ficção, antropologia e documentário, sendo elas o romance Maíra, de Darcy Ribeiro (1976), e os filmes A Última Floresta (2021), de Luiz Bolognesi e A Febre (2019), de Maya Da-Rin, enxergamos tanto as afinidades entre essas obras, como o quão distantes estamos do século XIX das fotografias antropológicas que fizeram do corpo colonizado um objeto de estudo, e da idealização do bom selvagem dos romances e da pintura.
    O olhar ainda é externo, não abordamos aqui as produções realizadas pelos indígenas, mas há um desejo de aproximação e empatia com visíveis consequências para o próprio discurso, que precisa ser abrandado para melhor se adaptar ao seu conteúdo. Avá, personagem do romance de Darcy Ribeiro, quer traduzir a bíblia em termos que sejam compreensíveis ao seu povo, mas a linguista esposa do missionário censura essa adaptação. Ela é como o romancista, o pintor ou o fotógrafo do século XIX, incapaz de se colocar no lugar do outro e renunciar às suas prerrogativas ao retratar o indígena compatível com os moldes previstos pela literatura, pela pintura e pela ciência de então. O antropólogo romancista e os cineastas em questão estão mais próximos de Avá, traduzem a questão indígena para o seu povo não-indígena, e procuram adaptar a linguagem do romance e do cinema ao propósito de perceber menos como o outro é do que como o outro percebe, ou seja, como o ser do outro se revela no ser da sua percepção. Trata-se ainda de despertar empatia pelo indígena, um propósito evidente na literatura e na pintura do século XIX, porém o fascínio implícito e detonador do olhar do não-indígena tem outras motivações. Ele é movido tanto pela nostalgia de uma fusão com a natureza quanto pela curiosidade por uma forma de conceber o mundo desprovida das amarras da racionalidade. No entanto, por mais contaminado que esteja esse olhar pelo que deve ser sanado pela figura do indígena, a crueza do contato e a ferida aberta pelo encontro, ou desencontro, entre culturas diferentes não são dissimulados.
    Os escritos de Eduardo Viveiros de Castro (2014) sobre o perspectivismo indígena nos ajudam a compreender como o pensamento ameríndio desconhece a hierarquia entre o humano e o não-humano que rege o pensamento ocidental, a começar pelo fato de que na cosmologia indígena os humanos podem se identificar com animais, como bem exemplificado no romance do Darcy Ribeiro, e há ainda uma concepção ameríndia dos não-humanos como sendo humanos na sua aldeia e organização própria – é o que sugere o irmão de Justino, no filme A Febre, sobre o ataque de uma criatura ainda não identificada noticiado no jornal televisivo, ao comentar que pode não ser um animal, mas algo como uma roupagem de animal para outro ser. Também o livro A Queda do Céu, escrito por Davi Kopenawa e Bruce Albert, trouxe compreensão mais aprofundada da cosmologia yanomami e da maneira como a ameaça que paira sobre os yanomami foi assimilada em termos míticos. Os reflexos disso podem ser vistos nas obras consideradas nesse artigo, especialmente no filme A Última Floresta, um misto de documentário e ficção que conta com Davi Kopenawa como condutor da narrativa explicitamente inspirada no livro do xamã yanomami e do antropólogo francês, conforme relata o diretor Luiz Bolognesi (2021). A análise das três obras em questão vai se apoiar nesses autores para desvendar as afinidades entre o romance do antropólogo, o documentário que não se furta a encenar mitos e o filme de ficção visto por estudantes indígenas da UFSCar, que se espelharam no personagem do Justino, no filme A Febre (BORGES, 2021)

Bibliografia

    BORGES, Vanessa Carneiro. Que febre é essa? Olhares indígenas sobre o filme “A Febre” . InformaSUS, UFSCar. São Carlos, SP. 7.5.21. https://informasus.ufscar.br/que-febre-e-essa-olhares-indigenas-sobre-o-filme-a-febre/ Acesso: 20 abr 2023.
    BOLOGNESI, Luiz. A Última Floresta: os rituais da ancestralidade indígena na Berlinale. Entrevista concedida a Rodrigo Fonseca. C7Cinema, 11.2.21. https://c7nema.net/entrevistas/item/94376-a-ultima-floresta-os-rituais-da-ancestralidade-indigena-na-berlinale.html Acesso: 20 abr 2023.
    FOUCAULT, M. “Os fatos comparativos”. In: ____. A arqueologia do saber. 8ª ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2013.
    KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
    STAM, Robert. Indigeneity and the Decolonizing Gaze: transnational imagery, media aesthetics and social thought. London, Bloomsbury Academic, 2023.
    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. São Paulo: Cosac Naify, 2014.