Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Gabriel Filgueira Marinho (ESPM)

Minicurrículo

    Documentarista pela Universidade de Brasília – UnB (2008), e mestre em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2011), trabalha principalmente com imagens de arquivo como ferramenta narrativa como realizador de curtas, longas-metragens e séries documentais. Sua principal área de estudo relaciona os campos de memória e História, arquivos e memórias traumáticas. Atualmente é professor na ESPM lecionando nas áreas de televisão, cinema documentário e representatividade no Audiovisual.

Ficha do Trabalho

Título

    Duas imagens de um casamento: Beatles, arquivos e documentários

Formato

    Presencial

Resumo

    A migração de imagens em narrativas de arquivo ocorre, muitas vezes, à revelia dos seus sentidos originais. O documentário “Beatles: Let it be” (1970), por exemplo, articula horas de material bruto para narrar o crepúsculo do grupo musical, detalhando seus conflitos e rancores. Esse mesmo bruto é revisitado 50 anos depois para realização de “Get back” (2021), que narra momentos de harmonia e descontração entre os membros. Discutimos aqui como se operou essa ressignificação semântica.

Resumo expandido

    No universo das narrativas de arquivo, chamamos de ruídos aqueles marcadores indesejáveis sobre a composição da imagem, capazes de acusar a existência de uma operação de migração ou recontextualização (BERNARDET, 2004). Quando esse rastro de contradição é percebido pelo espectador, mesmo que não seja possível descobrir a origem contextual do plano, ficam expostos as costuras narrativas que a montagem realizou. Sem o controle da composição original, os realizadores desse gênero na tradição documentário precisam negociar com sua audiência e com a montagem essa supressão da realidade contextual.
    A ideia por trás desse conceito tem desdobramentos sobre a importância da genealogia da imagem migrante para as narrativas de arquivo. Para o pesquisador estadunidense Jay Leyda, era fundamental que os realizadores dos filmes de compilação – como chamava esse cinema feito a partir de registros de terceiros – reconhecessem a origem dos planos migratórios (LEYDA, 1964). Afinal, uma costura que ignorasse o propósito original das imagens poderia potencialmente construir narrativas falsas e criar um repertório iconográfico enganoso sobre eventos e personalidades históricas. Em oposição a essa ideia, a pesquisadora canadense Jaime Baron desloca o problema para o campo dos estudos de recepção, chamando de efeito arquivo a capacidade de um registro “convencer” a audiência que pertence a determinado contexto e temporalidade, independente de sua função original (BARON, 2014).
    A partir da análise comparativa entre os documentários “Let it be” (1970, 81min) e “Get Back” (2021, 468 min), propomos aplicar a ideia de ruído para migrações semânticas. Ou seja, filmes que compartilham o mesmo tema, tratam dos mesmos eventos, dos mesmos personagens, mas cujo o material bruto se prestou a duas narrativas com abordagens e olhares opostos.
    Quando o diretor Michael Lindsay-Hogg (1940-) foi convidado para realizar um documentário sobre um novo álbum da banda inglesa The Beatles, seu olhar foi capturado por uma atmosfera de conflitos entre os integrantes. Talvez por sua relação com os músicos já ser de longa data, tendo ele dirigido alguns dos seus videoclipes musicais, o que observou durante aquelas semanas de gravação do álbum “Let it be” foi muito diferente do que tinha visto em seus encontros anteriores. Ele ainda estava no processo de montagem quando em Abril de 1970, o baixista Paul McCartney anunciou sua saída da banda. Um evento que geraria o efeito cascata da dissolução da banda.
    A obra de Lindsay-Hougg nos conta a história de um casamento em ruínas. Sua narrativa foi incorporada ao imaginário coletivo sobre “as razões” do fim do grupo. Seus registros discorrem sobre as brigas entre McCartney e Harrison, as interferências (não bem-vindas) da artista japonesa Yoko Ono sobre as composições do grupo, entre outras teses de senso comum que ganharam o imaginário coletivo. Tudo isso a partir de um olhar observacional, muito alinhado ao Cinema Direto, feito a partir de mais cinquenta horas de material bruto.
    Meio século depois, esse mesmo material foi revisitado pelo diretor neozelandês Peter Jackson (1961-). Realizado por um fã confesso da banda, esse novo filme revela um olhar mais generoso com o fim do grupo musical. São imagens de momentos de descontração, afeto, interação harmoniosa e criativa entre os membros da banda – inclusive aqueles personagens vistos como pivôs deste tumultuoso fim. Trata-se de uma obra extensa, construída em três partes e que sugere que as incompatibilidades entre os membros não afetaram o reconhecimento de todos sobre relações amistosas.
    Um mesmo material bruto, então, se prestou a dois olhares bem distintos sobre o mesmo evento. Queremos enxergar aqui que imagens foram evitadas por cada um desses filmes para que pudessem corroborar suas teses, assim como quais imagens se prestam a um entendimento duplo de significados, ficando a cargo do espectador reconhecer os sinais de contradição (ruídos) nesses planos.

Bibliografia

    BARON, Jaimie. The Archive Effect: found footage and the audiovisual experience of history. London and New York: Routledge, 2014.

    LEYDA, Jay. Film beget films: a study of the compilation film. New York: Hill and Wang, 1964.

    BERNARDET, Jean-Claude. A Migração de imagens in TEIXEIRA, Francisco Ilinaldo (org.) “Documentário no Brasil: tradição e transformação”. São Paulo: Summus, 2004

    BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. BASIC BOOKS: New York, 2002.

    ZRYD, Micheal. Found Footage Film as Discursive Metahistory: Craig Baldwing’s Tribulation 99. In The Moving Image, Volume 3, Number 2, Fall 2003. University of Minnesota Press. pp. 40-61 (Article)