Ficha do Proponente
Proponente
- Christiane Quaresma Medeiros (Unicap)
Minicurrículo
- Christiane Quaresma é professora na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Formada em Design pela UFPE, mestre e doutora pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE, onde desenvolveu pesquisas no âmbito da história e teoria do cinema de animação, bem como dos estudos do corpo e do gesto no campo estético e na arte animada.
Ficha do Trabalho
Título
- O gesto e o mal no cinema de horror
Formato
- Presencial
Resumo
- O texto se propõe a discutir certo imaginário sobre o corpo que atravessa as representações do mal no cinema de horror, não somente a partir da forma, mas também dos movimentos corporais, onde elaboramos do gesto de Satanás ao gesto do espírito perturbado. Busca, a partir de uma leitura sócio-antropológica, examinar por que nós, enquanto sociedade, costumamos imaginar – através do cinema – criaturas tocadas pelo mal como corpos que gesticulam de forma desconfigurada.
Resumo expandido
- Em um trecho do filme “O exorcista” (1973), o Padre Karras desafia o demônio que possui a menina Regan a se libertar das amarras que mantêm o corpo da garota preso a cama, ao que ele responde que isto seria uma demonstração vulgar de seu poder. A princípio, poderíamos questionar: e não seria o domínio que ele exerce sobre a performance corporal de Regan igualmente uma demonstração vulgar de poder – da cabeça virada para trás à cena em que ela desce escadas de costas? Uma resposta possível estaria na leitura que Bataille (2020) faz do mal. Para o autor, só é expressão pura do mal se não se presta a uma utilidade, se não entra em jogo o que Bataille chama de “cálculo dos interesses”. Assim é, que a utilização de sua força a serviço do interesse de se libertar da cama é questão de ordem vulgar. É de outra natureza o mal que se manifesta a partir dos gestos que forçam os limites do corpo de Regan, que é torcido pelo prazer da mácula. Não por coincidência, a produção ficou marcada por estas cenas em que o mal que reside na personagem se manifesta a partir dessa gestualidade excessivamente fora da normalidade.
Que o mal se revele no gesto, a discussão já não se sustenta apenas com uma abordagem a respeito do mal. Se faz necessário um olhar sócio-antropológico do corpo, a fim de entendermos o lugar em que colocamos o gesto no imaginário coletivo, pois é a medida de seu valor que faz dele alvo ideal do maléfico. Nesse sentido, “O exorcista” pode parecer um exemplo demasiadamente singular – quiçá desatualizado – para representar o que pensamos sobre o gesto e o mal num contexto mais amplo (e atual). No entanto, o que vemos em “O exorcista” é apenas uma das dimensões da desconfiguração gestual no cinema de horror. Os fantasmas perturbados que parecem ter perdido o domínio da gestualidade revelam outra faceta do fenômeno. Diferente do zumbi, que tem seu gesto desconfigurado justificado na narrativa a partir de um viés anatômico-biológico – perdendo o comando de seus gestos porque lhe faltam partes do corpo, por exemplo – o fantasma, por sua ausência de materialidade, poderia simular perfeitamente a gestualidade humana (em suas dimensões anatômicas e culturais). Aqui, o que está em xeque não é a natureza do fantasma, mas do recurso ficcional em que construímos a imagem do mesmo. Para Le Breton (2013), o corpo da ficção é sintoma do que se elabora no imaginário. Nesse sentido, o caso do fantasma se torna revelador porque sua ausência de materialidade poderia ser suficiente para que imaginássemos seu corpo como um que pode tudo. Assim, a pergunta em que se pauta o presente texto poderia ser assim formulada: por que nós, enquanto sociedade, costumamos imaginar – através do cinema – criaturas tocadas pelo mal como corpos que gesticulam de forma desconfigurada?
A leitura sócio-antropológica dá conta de perceber que o gesto foi construído no imaginário como sintoma fundamental da vida e da autonomia humana (perante si, o cosmo e os seres). Le Breton (2012, p. 7) afirma que “a existência é corporal” e Flusser (2014, p. 36) completaria dizendo: “a existência se manifesta por gestos”. É assim que no século XIV, os desenhos anatômicos de cadáveres recorriam a estratégia de representação de esqueletos gesticulando, para atenuar a imagem do corpo morto (LE BRETON, 2011). Agamben (2017) traduz a sociedade ocidental do final do século XIX como uma que teria perdido seus gestos. Para ele, o cinema é resultado desse mal estar. Seria através do cinema que esta sociedade obcecada pelo gesto tentaria recuperá-lo. Se o cinema é sintoma de uma obsessão pelo gesto, devido ao receio de sua perda, nada mais coerente do que fantasiar a perda do gesto como algo próprio do universo do horror. Discute-se, portanto, certo imaginário sobre o corpo que atravessa as representações do mal no cinema de horror, não somente a partir da forma, mas também dos movimentos corporais, onde elaboramos o gesto de Satanás e do espírito perturbado.
Bibliografia
- AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. In: AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p. 51-61.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume, 2014.
LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2012.
LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2013.