Ficha do Proponente
Proponente
- Carla Ludmila Maia Martins (Una)
Minicurrículo
- Doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período sanduíche pela Tulane University / New Orleans. É professora do curso de Cinema e Audiovisual do Centro Universitário Una. Integra a Associação Filmes de Quintal. É representante do setor audiovisual no Conselho Municipal de Políticas Culturais de Belo Horizonte (Comuc) e membro do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine).
Ficha do Trabalho
Título
- Entre a bolsa e a flecha: outras estórias por um continuum cuir
Seminário
- Tenda Cuir
Formato
- Presencial
Resumo
- Continuamos a explorar a noção de continuum cuir como mobilizadora de outras cenas para o campo de estudos de gênero e sexualidades, bem como de outros processos e práticas criativas no audiovisual. Dessa vez, em estreito diálogo com o pensamento de Ursula K. Le Guin sobre a teoria da bolsa de ficção, buscamos analisar algumas implicações éticas, poéticas e políticas de pensar outras estórias, consoantes com novas figuras, outras formas de narrar.
Resumo expandido
- No ensaio “A teoria da bolsa de ficção” (2021), Ursula K. Le Guin lança um novo olhar para a narrativa ficcional. Em lugar da jornada do herói, impulsiva e combativa, linear e de natureza imperial, a autora retoma a “teoria da bolsa”, na esteira de Elizabeth Fisher, em favor de estórias que, em vez de heróis, apresentam pessoas, em vez de grandes feitos, guardam pequenos acontecimentos e, em substituição ao conflito e sua resolução, tão central para a narrativa clássica, apostam no processo contínuo.
De acordo com a teoria de Fisher, bem antes de fabricar armas pontiagudas, coisas de cortar, espetar, ferir, a espécie humana precisou fabricar coisas para conter outras coisas. Isso porque a maior parte dos habitantes de regiões tropicais e temperadas eram coletores e dependiam de objetos como bolsas e cestas, recipientes para guardar dentro o que colhiam. “Junto ou antes da ferramenta que força a energia para fora, nós fizemos a ferramenta que traz energia para casa”, escreve Le Guin.
Ao transpor a sugestiva teoria de Fisher para o campo das narrativas, Le Guin sugere que atentemos para outra forma narrativa, não mais a da lança ou da flecha, direcionada ao desenlace trágico ou triunfal, mas a da bolsa, ou ainda, a do patuá. Um romance patuá abrigaria coisas variadas, pessoas comuns, ações insignificantes, pedrinhas, ossos, sementes, coisas guardadas “numa relação particular e poderosa umas com as outras e conosco”. De tal relação singular poderia surgir uma estória cheia de começos sem fim, “e muito mais artimanhas do que conflitos, muito menos triunfos do que armadilhas e delírios”.
Propomos analisar como as ideias de Le Guin se aplicam a outras estórias no cinema, não mais protagonizadas pelos heróis violentos e exitosos, mas por personagens em processo contínuo de invenção, em exercícios de contravenção do télos, da ordem e da determinação. Em nossas pesquisas sobre um cinema com mulheres (2015) e seus desdobramentos no campo de estudos cuir (2022), são abundantes os filmes que poderiam exemplificar essas outras estórias. Em nossa apresentação, propomos coletar trechos de tais filmes estudados no decorrer de nossa pesquisa, como quem prepara um patuá que possa servir de guia ao pensamento.
Buscaremos apresentar as ideias de Le Guin em diálogo com a noção de continuum cuir, que abordamos na Socine em 2022. Em perspectiva crítica, no pensamento de Le Guin ainda resiste um certo binarismo, manifesto na constância das oposições: empreendimento heróico, linear e masculino x criação acolhedora, cíclica e feminina; ação caçadora x ação coletora; narrativa-flecha x romance-patuá. Contudo, para se construir uma cesta, coisa de guardar, pode ser necessária a agulha, coisa de espetar, assim como para se obter uma bolsa de couro, resistente para maiores pesos, é preciso a lança ou a flecha para caçar o animal. Propomos continuar essa estória tecida entre agulha e fio, lança e patuá, em que masculino e feminino diferem, mas não se opõem. Antes de unidades absolutas e contrárias, fixadas em lugares estáveis, queremos pensar masculino, feminino e o amplo espectro de possibilidades identitárias entre os dois como posições instáveis, ou melhor, composições sempre divisíveis em novas partes, efeitos parciais, temporários, precários e móveis que emergem não do mundo ordenado, mas de um mundo emaranhado, na expressão de Denise Ferreira da Silva. O pensamento cuir, apostamos, é decisivo para invenção dessas outras estórias, provisórias, mas potencialmente transformadoras, delirantes e libertadoras, feitas entre a espada e o coldre, a flecha e a aljava, a casa e a estrada. A figura da tenda cabe bem ao nosso argumento: como a casa, a tenda também acolhe pessoas e coisas dentro, mas difere-se por ser móvel, provisória. Não fixada e fechada em si mesma, a tenda serve de abrigo aos que se encontram em travessia, mantendo-se sensível ao que corta, como a flecha do vento, e ao que guarda, como a bolsa/patuá.
Bibliografia
- FERREIRA DA SILVA, D. “Sobre diferença sem separabilidade”, 32ª. Bienal de São Paulo: Incerteza Viva, ed. Jochen Volz e Júlia Rebouças, catálogo da mostra. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016, pp. 57-65.
LE GUIN, Ursula K. A teoria da bolsa de ficção. São Paulo: n-1 edições, 2021.
MAIA, Carla. Sob o risco do gênero: clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2015.
MAIA, Carla. Cinema com mulheres e continuum cuir. Anais Digitais XXIV Socine, 2022.
RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Trad. Carlos Guilherme do Valle. Revista Bagoas, n.05, 2010, p. 17-44.