Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Mateus Araujo Silva (ECA-USP)

Minicurrículo

    Mateus Araújo é professor livre docente de teoria e história do cinema na ECA-USP. Organizou ou co-organizou os livros Glauber Rocha / Nelson Rodrigues (2005), Jean Rouch 2009: Retrospectivas e Colóquios no Brasil (2010), Straub-Huillet (2012), Charles Chaplin (2012), Jacques Rivette (2013), Godard inteiro ou o mundo em pedaços (2015), O cinema interior de Philippe Garrel (2018), Glauber Rocha: crítica esparsa (2019) e Glauber Rocha: O Nascimento dos deuses (2019). Traduziu Glauber na França.

Ficha do Trabalho

Título

    O diálogo com Carmelo Bene no estilo tardio de Glauber Rocha

Seminário

    Cinema Comparado

Formato

    Presencial

Resumo

    A comunicação discute o diálogo perceptível travado pelos últimos filmes de Glauber Rocha (sobretudo Claro e Idade da Terra) com aspectos do trabalho do ator, diretor teatral, escritor e cineasta italiano Carmelo Bene (1937-2002), que ele integrou ao seu programa estético, apropriando-se completamente deles e transformando-os em matéria inteiramente sua. Nunca alardeado por Glauber e ignorado amiúde por seus intérpretes, tal diálogo ajuda a avaliar melhor a singularidade de seu estilo tardio.

Resumo expandido

    Glauber Rocha tomou contato no fim dos anos 60 com o ator, diretor teatral, escritor e cineasta italiano Carmelo Bene (1937–2002), cujo trabalho permanece pouco visto e pouco discutido no Brasil. Os dois se conheceram em maio de 1969, no Festival de Cannes, que programava Capricci (Bene, 1969) na Quinzaine des Realisateurs (junto com Barravento, 1961, de Glauber) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber, 1969) na seleção oficial. Cada um viu e apreciou o(s) filme(s) do outro, e ali nasceu uma amizade e uma frequentação romana entre os dois, mencionada em textos e entrevistas de ambos.
    A comunicação comenta de passagem as referencias cruzadas de um ao outro e se concentra no diálogo perceptível travado pelos últimos filmes de Glauber (sobretudo Claro, de 1975, e Idade da Terra, de 1980) com aspectos do trabalho de Bene, que ele integrou ao seu programa estético, sem nunca porém se referir a tal integração em seus textos e declarações sobre o amigo italiano, talvez por perceber na poética dele preocupações que já eram suas antes do seu encontro, talvez pelo cuidado em preservar uma imagem de autarquia criativa para além de qualquer reconhecimento de influência. Tal diálogo escapou a boa parte dos estudiosos de Glauber, dos melhores aos menos bons. Se não passou despercebido por alguns críticos (como Noel Simsolo, Marcel Martin, eu mesmo e Annalisa Mirizio) nem por alguns colegas e parceiros de Glauber (lembro Júlio Bressane e Ricardo Miranda, um dos montadores de Idade da Terra), ele ainda espera por um estudo mais detido e aprofundado.
    Nos limites da brevidade, vou assinalar os ecos de Bene nos dois últimos longas de Glauber, assim como, se houver tempo, nas suas intervenções para o programa televisivo Abertura (1979-80). Tais ecos de Bene nunca surgem sozinhos, vem sempre conjugados com os de outras fontes de inspiração e, portanto, transformados. No caso de Claro, Bene é convocado junto com um casal de cineastas cujo programa estético parece muito diferente do seu, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, numa conjugação sui generis que já comentei num estudo anterior. No caso de A Idade da terra, a presença de Bene se conjuga com um diálogo de fundo com Que viva México! (1931), de Eisenstein, que inspirou o filme ao longo de sua gênese.
    Em Claro (filmado de improviso em 1975 por Glauber, com sua companheira Juliet Berto, alguns amigos, câmera na mão e som direto, sem roteiro prévio, em ruas, praças e interiores de Roma), Bene contracena com Berto numa das sequências mais marcantes de interior, filmada em seu apartamento da Via Aventina, com um estilo extravagante de interpretação que parece inspirar a atuação de outros atores em outras sequências, contaminando assim a mise en scène do filme inteiro. Em Idade da terra, último filme e talvez o mais desafiador de Glauber em matéria de dramaturgia, construção, estilo e tom (tendente ao extravagante em vários momentos, sobretudo os do personagem de Brahms, interpretado por Maurício do Valle, caricatura de agente imperialista em visita ao Brasil), percebemos ecos do cinema de Bene desde o preâmbulo cosmogônico, numa longa sequência de rito ameríndio, na qual a saturação do plano, a instabilidade do ritmo da montagem, a ambiência de delírio coletivo e o tratamento visual fazem pensar no espaço do estúdio de Salomé (1972) de Bene, ainda que sua religiosidade pagã não tenha, como no filme do italiano, uma dimensão sacrílega ou derrisória. Ao longo do filme, a extravagância, as variações repentinas de humor dos personagens e dos atores, o “Daimon” que parece habitá-los e mesmo os elementos próximos da sequência de Bene em Claro permitem perceber sua presença no arsenal de elementos estilísticos e dramatúrgicos de que o filme lança mão.
    Num caso como no outro, porém, os elementos absorvidos de Bene foram completamente apropriados por Glauber, que os transformou numa matéria inteiramente sua, confirmando assim uma lei geral do seu trabalho.

Bibliografia

    BENE, Carmelo. Opere. Bompiani, 1995
    _____. Si può solo dire nulla (Interviste). A cura di L. Buoncristiano e F. Primosig. Il Saggiattore, 2022
    ARAUJO SILVA, Mateus. “Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados”. In E. Gougain et al. (Org). Straub-Huillet. CCBB, 2012, p.243-63
    DELEUZE, Gilles. “Un manifeste de moins”. In: C. Bene et G. Deleuze, Superpositions. Minuit, 1979, p.85-131
    ROCHA, Glauber. “Idade da Terra: um aviso aos intelectuais”. Folha de São Paulo, 9/11/1980
    _____. O Século do Cinema. 2a ed. CosacNaify, 2006
    SIMSOLO, Noël. “les rigueurs du désordre”. In : BAX, D.; BÉGHIN, C. & ARAÚJO SILVA, M. (Dir.). Glauber Rocha / Nelson Rodrigues. Magic Cinéma, 2005, p.91
    XAVIER, Ismail. “Evangelho, terceiro mundo e as irradiações do planalto”. Filme Cultura, n.38/39, 1981, p.69-73
    ______. “A idade da terra e sua visão mítica da decadência”. Cinemais, n.13, 1998, p.153-84
    ______. “Glauber Rocha: o desejo da História”. In: O cinema brasileiro moderno. Paz e Terra, 2001, p.127-55