Ficha do Proponente
Proponente
- Fabio Camarneiro (UFES)
Minicurrículo
- Fabio Camarneiro é professor no curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. É doutor em Meios e Processos Audiovisuais e mestre em Comunicação Impressa e Audiovisual, ambos pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA / USP. Tem textos publicados nos livros “Ismail Xavier: um pensador do cinema brasileiro”, “Revisitar a teoria do cinema: Teoria dos cineastas, vol. 3”, entre outros.
Ficha do Trabalho
Título
- Geometria do poder: imagens do Estado em dois filmes indigenistas
Seminário
- Cinema e audiovisual na América Latina: novas perspectivas epistêmicas, estéticas e geopolíticas
Formato
- Presencial
Resumo
- O Estado brasileiro aparece em Uaká (Paula Gaitán, 1988) na arquitetura dos prédios de Brasília e, em Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006), na montagem de imagens da “modernização conservadora” do país. A geometrização do espaço, associada à ideia de um poder central, entende os traços vetoriais tanto como “segmento de reta” quanto como uma “determinada orientação” rumo ao progresso econômico. Resistindo a isso, os filmes marcam a presença dos rituais e dos corpos dos indígenas.
Resumo expandido
- Durante as últimas décadas, o crescimento da produção audiovisual realizada por indígenas e populações originárias tem acompanhado (e, ao mesmo tempo, provocado) uma revisão em alguns pressupostos do cinema etnográfico. Em meio a esse cenário, há o surgimento do termo “etnografia experimental”, que “começou a circular na teoria antropológica pós-colonial como uma forma de se referir a discursos que contornam o empirismo e a objetividade convencionalmente associados à etnografia” (RUSSELL, 1999, p. xi).
Por seu caráter ensaístico, que, entre outras estratégias, resolve abolir a didática voz over que tenta explicar as imagens do ritual indígena, Uaká (Paula Gaitán, 1988) pode ser entendido como exemplo de “etnografia experimental”. Dedicado ao Quarup, ritual de homenagem aos mortos realizado na região do Alto Xingu, alguns poucos momentos do filme mostram a cidade de Brasília: a icônica silhueta dos edifícios da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e, ao fundo, um sol alaranjado à altura do horizonte. Em frente a um prédio público, com sua fachada branca e os signos da arquitetura modernista de Oscar Niemeyer, vemos um homem de traços indígenas: uma vista frontal e outra lateral, a imobilidade corporal, a expressão vazia não estão distantes do retrato produzido para um documento oficial ou uma ficha policial.
Tais imagens da capital federal podem ser entendidas de diferentes maneiras, mas certamente funcionam como contraponto para o ritual indígena que, organizado em torno de um totem, vê a aparição desse outro totem (a cidade modernista), símbolo da burocracia do Estado brasileiro. As imagens em Uaká não parecem capazes de abarcar a figura do indígena. A arquitetura da cidade não parece ter lugar para ele. Brasília representa um projeto de país do qual os indígenas foram excluídos.
Realizado quase duas décadas depois do filme de Paula Gaitán — e importante exemplo de “etnografia experimental” —, Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006) narra a conturbada trajetória do indígena Carapiru, da etnia awá guajá. Ainda que de relance, mais uma vez encontramos as imagens da capital federal (a Praça dos Três Poderes, a Esplanada dos Ministérios). E, mais uma vez, o indígena aparece deslocado. Porém, mais que as imagens de Brasília, é a complexa estrutura do filme de Andrea Tonacci que deixa entrever como “os passos de Carapiru não são mais dirigidos por ele, mas ditados pelo Estado” (COHN, 2008, p. 51). Para Luís Alberto Rocha Melo, um bom exemplo estaria na cena do encontro entre Carapiru e o sertanista Sydney Possuelo, que revelaria “a relação existente entre a educação e o controle ideológico, entre a ação do Estado e a dominação de grupos sociais sobre outros” (MELO, 2008, p. 39).
O Estado brasileiro reaparece em Serras da desordem na montagem de filmes de arquivo que recupera, em tom ora crítico, ora paródico, imagens próximas ao espírito da propaganda ufanista dos anos 1980 e 1990, quando “um país vai sendo construído pelas mãos dos militares e dos industriais, ancorados no milagre econômico, na violenta repressão política e no endividamento externo” (MELO, 2008, p. 39).
As relações de poder modificam a paisagem. Em Serras da desordem, a visualidade sinuosa da mata, cheia de curvas e reentrâncias, passa a ser perturbada pelas linhas retas das cercas de arame-farpado, pela verticalidade do trem que se aproxima da câmera, pela linha inexorável da estrada de terra batida que ruma até o horizonte. Se a geometrização do espaço está associada à ideia de um poder central, os traços vetoriais — aqui entendidos no duplo sentido de “segmento de reta” e de “determinada orientação” — insistem, a todo custo, em sobrepujar as formas orgânicas e selvagens. Tanto em Uaká como em Serras da desordem podemos perceber como certo projeto de país, reiterado durante os 21 anos de ditadura militar, pretendia “enquadrar” os indígenas, seus corpos e suas terras em linhas vetoriais que tinham como único horizonte o progresso econômico.
Bibliografia
- COHN, Clarice. “Reflexões sobre Serras da desordem”. In: CAETANO, Daniel (org.). Serras da desordem. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008. pp. 43-57. (Odeon; 1)
MARGUILES, Ivone. “A-filiação em Serras da desordem”. Devires: cinema e humanidades, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, vol. 9, nº 2, pp. 70-91, jul.-dez. 2012.
MELO, Luis Alberto Rocha. “O lugar das imagens”. In: CAETANO, Daniel (org.). Serras da desordem. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008. pp. 25-42. (Odeon; 1)
PAIVA, Marcelo. “As bifurcações do tempo: considerações sobre três figuras temporais no filme Serras da desordem, de Andrea Tonacci”. Contracampo, Niterói, vol. 38, nº 3, pp. 54-67, dez. 2019-mar. 2020.
RUSSELL, Catherine. Experimental Ethnography: The Work of Film in the Age of Video. Durham; London: Duke University Press, 1999.