Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Régis Orlando Rasia (UFMS)

Minicurrículo

    Doutor em multimeios pela UNICAMP e mestre pela mesma instituição. Professor no curso de Audiovisual da UFMS.
    Atua em disciplinas vinculadas a animação e pós-produção audiovisual. Possui interesse em linhas de pesquisas sobre o cinema brasileiro, filme-ensaio e cinema experimental.

Ficha do Trabalho

Título

    Helena Ignez e o cinema do corpo em tempos de pandemia

Formato

    Presencial

Resumo

    Este texto tem como objetivo analisar o filme “Fogo Baixo, Alto Astral”, de Helena Ignez, que retrata um dia na vida da atriz durante o período de isolamento social, explorando a experiência do corpo como fonte de pensamento e criação. Através dos conceitos de “corpo cotidiano” e “corpo cerimonial” de Gilles Deleuze, pretendemos refletir sobre as questões dos corpos em relação aos espaços internos das casas, utilizando o cinema como um inventário de gestos, hábitos e cerimônias cotidianos.

Resumo expandido

    Com o impacto da pandemia de COVID-19, a produção audiovisual mundial teve que se adaptar ao distanciamento social, restrições de viagens e reuniões coletivas, resultando em filmes com equipes menores e orçamentos reduzidos, além de incorporar o espaço doméstico como cenário de várias narrativas.

    Nesse contexto, o programa Convida do Instituto Moreira Salles propôs a artistas brasileiros a criação de obras para serem exibidas online durante a pandemia. Um desses filmes é “Fogo Baixo, Alto Astral”, dirigido por Helena Ignez, atriz referência no cinema marginal brasileiro entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1970 (RAMOS, 1987).

    O filme em questão retrata o 34º dia de isolamento social da diretora e protagonista da obra, ocorrido em maio de 2020, recortando acontecimentos em segmentos elípticos de um dia dentro de sua casa. A narrativa começa com o despertar de Helena Ignez, passando pela elaboração do café da manhã e chegando à manifestação política pelo afeto do som exterior com o bater das panelas, culminando com a exaltação da dança e o aquietar do corpo através da meditação zen. Entre outras questões, o filme acompanha o desenrolar do corpo cinematográfico da atriz como tensão e principal instrumento de expressão dos hábitos, gestos e liturgias comuns aos eventos cotidiano caseiro.

    Como um retrato de si, a atriz se expressa com o corpo de maneira modular, inquieta e em movimento quando dança, mas também contemplativa e introspectiva quando se põe em repouso no momento da meditação. O título “Fogo baixo, alto astral”, talvez se refira a esta dimensão dos blocos de sensações que repercutem às alternâncias experienciadas por muitos nos “altos e baixos” dos humores na pandemia.

    As transformações e crises vivenciadas por nossa sociedade em função do confinamento durante a pandemia podem ter inspirado novas formas de explorar o corpo como objeto de representação e expressão artística. Aberto às reflexões sobre a corporeidade, recorre-se aos conceitos propostos pelo filósofo Gilles Deleuze, que fala sobre o cinema experimental como aquele capaz de colocar em jogo formas de expressão negligenciadas pelo cinema de ordem mais comercial. O teórico traz à luz a reflexão sobre o “corpo-cotidiano” e “corpo-cerimonial” como dois polos “encontrados ou reencontrados no cinema experimental” (DELEUZE, 2005, p.229). Para Deleuze (2005, p. 227), “as categorias da vida são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas. O corpo cotidiano se revela no sono, na embriaguez, nos esforços e nas resistências”.

    Deleuze (2005, p. 228) defende que o cinema tem a capacidade de transformar um corpo cotidiano em um objeto de cerimônia por meio da utilização da câmera, “‘Dar’ um corpo, montar uma câmera no corpo, adquire outro sentido: não é mais seguir e acuar o corpo cotidiano mas fazê-Ia passar por uma cerimônia”. Para este fim, é importante introduzi-lo “numa gaiola de vidro ou num cristal, impor-lhe um carnaval, um disfarce que dele faça um corpo grotesco, mas também extraia dele um corpo gracioso ou glorioso, a fim de atingir, finalmente, o desaparecimento do corpo visível”.

    É possível pensar em “Fogo Baixo, Alto Astral” pelo modo como apresenta uma abordagem que valoriza o corpo como fonte de pensamento e criação, capaz de expressar as categorias da vida, valorizando a importância da experiência sensorial e da percepção do ambiente doméstico como um espaço de possibilidades diante do inevitável confinamento. O cinema se torna, assim, um inventário de gestos cotidianos, que destaca a poesia e a beleza dos pequenos momentos da vida.

    Helena Ignez se revela nas vicissitudes tangentes do seu corpo, criando relações importantes e desafiando as questões do cinema como forma de resistência e criação, especialmente em tempos de pandemia. Ela procura celebrar a arte, a criatividade e a resistência política, evidenciando a importância de pertencer a um mundo, quase sempre em constante transformação.

Bibliografia

    BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

    DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. 338 p.

    GUIMARÃES, Pedro; OLIVEIRA, Sandro. Helena Ignez: Atriz experimental. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.

    GUIMARÃES, Pedro. “Helena Ignez: ator-autor entre a histeria e a pose, o satélite e a sedução”. Anais do VII Congresso da ABRACE – Tempos de memória: Vestígios, ressonâncias e mutações. Porto Alegre: [s.n.]. 2012.

    PARENTE, André. Narrativa e modernidade: os cinemas não-narrativos do pós-guerra. Campinas: Papirus, 2000.

    RAMOS, Fernão. Cinema marginal (1968-1973): a representação em seu limite. São Paulo, Brasiliense, 1987.

    SGANZERLA, Rogério. “Cinema brasileiro, um barco quase à deriva”. Folha de S. Paulo, São Paulo: 16/02/1983, p.14.

    TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Cinema ‘não-narrativos’ experimental e documentário – passagens. São Paulo: Alameda, 2012. 328 p.