Trabalhos aprovados 2023

Ficha do Proponente

Proponente

    Marília de Orange Uchôa da Fonseca (UFPE)

Minicurrículo

    Professora, fotógrafa e pesquisadora pernambucana, Marília de Orange é graduada em Fotografia (UNICAP), especializada em Estudos Cinematográficos (UNICAP), mestre em Comunicação (UFPE) e doutoranda do PPGCOM/UFPE. Profissional com ênfase na área da fotografia, do cinema e das artes buscando estabelecer e compreender suas relações com aspectos estéticos, políticos e sociais. Atualmente dedica-se ao projeto de pesquisa que busca compreender a estética do audiovisual do Afro-Surrealismo.

Ficha do Trabalho

Título

    O insólito e o onírico Afro-Surreal em Corra, Querida, Corra

Seminário

    Estudos do insólito e do horror no audiovisual

Formato

    Presencial

Resumo

    Esta comunicação propõe uma leitura do filme Corra, Querida, Corra (2020), de Shana Feste, como ato de desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2008) que o associa ao projeto do Manifesto Afro-Surreal, uma estratégia subversiva que busca dar visibilidade a narrativas sociais marginalizadas. Sugiro que a obra utiliza o horror, o grotesco, o suspense e o realismo sensório (ELSAESSER, 2015) na construção do seu onírico aproximando-se do dispositivo Afro-Surreal.

Resumo expandido

    Cherie, mulher negra, trabalhadora e mãe solo, recebe do seu chefe a tarefa de jantar com Ethan, homem branco, rico e importante cliente do escritório no qual trabalha. Mesmo desconfortável com a incumbência, ela se vê pressionada a aceitar. No decorrer do jantar, a simpatia e educação do rapaz conquistam sua confiança, fazendo-a baixar a guarda: é nesse momento que começa a sua jornada para sobreviver a uma caçada frenética onde ela é a presa de um monstro que fareja sangue. Esse é o enredo de Corra, Querida, Corra (2020) longa-metragem que busca dar visibilidade – transitando entre o suspense, horror e thriller – a uma temática invisibilizada: a misoginia, sua violência e cultura do estupro.

    O projeto de dar visibilidade às narrativas e temáticas historicamente invisibilizadas é um dos pilares estruturais do Afro-Surrealismo, dispositivo artístico que reflete sobre o mundo social daqueles que estão às margens, e possui raízes no pensamento de matriz negra que busca transformar a realidade. O Afro-Surrealismo “pressupõe que, além deste mundo visível, há um mundo invisível lutando para se manifestar” e a sua proposta é “revelá-lo” (MILLER, 2009). Para Walter Mignolo (2008) produções que buscam se opor à matriz de dominação e exaltam temáticas, narrativas e saberes gestados à margem são atos de desobediência epistêmica: uma estratégia subversiva dentro da construção de vida e de conhecimento diante de um sistema opressor.

    Sugiro que o Afro-Surrealismo deve ser pensado como um dispositivo artístico acionado por artistas que buscam dar visibilidade às narrativas e temáticas invisibilizadas dos povos historicamente subalternizados e marginalizados. Essa perspectiva está ancorada na noção de dispositivo como uma “estratégia narrativa capaz de produzir acontecimento na imagem e no mundo” (MIGLIORIN, 2005, p. 1). Percebo o dispositivo Afro-Surreal como um ato de desobediência epistêmica – um ato de luta e disputa no campo da linguagem – aproximando-se da proposta lançada por bell hooks (2019): “A linguagem também é um lugar de luta” (2019, p. 282), pois somos seres “entrelaçados com a linguagem” e nela vivemos “uma luta, ainda que oprimida, para nos recuperarmos, para reconciliar, reunir” e “renovar” nossa existência (HOOKS, 2019, p. 283-284).

    Proponho aspectos que aproximam Corra, Querida, Corra do conceito de Afro-Surrealismo. A busca por dar visibilidade a partir da perspectiva de uma desobediência epistêmica é o principal deles. Além da utilização do onírico Afro-Surreal marcado por explorar “rupturas na temporalidade linear” e oscilar “entre o real e o fantástico” (SPENCER, 2020, p. 42). Trata-se de um onírico que transita entre dois polos: imagens verossimilhantes à realidade, constituídas através suspense e do realismo sensório (ELSAESSER, 2015) – que convoca os sentidos para a construção da narrativa –, e imagens que dialogam com o fantástico, o mágico, o estranho e o sobrenatural, construídas a partir do “maravilhoso traumático” (SPENCER, 2020, p. 49) – materialização do absurdo – constituído através do horror e do grotesco. Essa configuração “marca” o Afro-Surrealismo “como diferente de outras formas de ficção especulativa, incluindo a fantasia e a ficção científica” (2020, p. 49).

    Corra, Querida, Corra apresenta uma recorrência de planos de cadência lenta que exploram o espaço em silêncio e aguçam os sentidos do espectador com uma sensação de que algo parece não estar certo na realidade, mesclando com imagens onde homens se transformam em demônios sedentos por sangue. No filme, o onírico Afro-Surreal é a chave de elaboração de uma estética “estranha e opositiva” (HOOKS, 2019) que tem o intuito de se opor à matriz de dominação e dar visibilidade à narrativa das vítimas da violência de gênero. Trata-se de uma obra que oferece um espaço discursivo onde o “horror” serve “para dramatizar ou expressar o mal-estar predominante” (CARROL, 1999, p. 293) de ser um subalternizado e marginalizado em uma sociedade opressora.

Bibliografia

    CARROL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas: Papirus, 1999.
    ELSAESSER, Thomas. Cinema mundial: realismo, evidência, presença. In: MELLO, Cecília (Org). Realismo Fantasmagórico. São Paulo: USP, 2015.
    HOOKS, bell. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. São Paulo: Elefante, 2019.
    MILLER, D. Scot (org). “Manifesto Afro-Surreal: Preto é o novo preto – Um manifesto do século XXI”. San Francisco Bay Guardian, v. 43, n. 34, 2009. Tradução de Yuri Costa disponível em: https://medium.com/@_eusouyuri/manifesto-afro-surreal-preto-%C3%A9-o-novo-preto-um-manifesto-do-s%C3%A9culo-xxi-4b984c995b65. Acesso em 23 de março de 2023.
    MIGLIORIN, Cezar. O dispositivo como estratégia narrativa. São Paulo, 2005.
    MIGNOLO, Walter. Desobediência Epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, n. 34, p. 287-324. Rio de Janeiro, 2008.
    SPENCER, Rochelle. Afro-Surrealism: The African Diaspora’s Surrealist Fiction. Routledge, 2020.