Ficha do Proponente
Proponente
- Eduardo Azevedo Medeiros (UFMG)
Minicurrículo
- Mestrando em Comunicação Social pelo PPGCOM da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), graduado arquiteto e urbanista pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Estudou temas como a ficção e a especulação dentro do campo do design e a relação entre a produção do espaço urbano e a reprodução de subjetividade. Atualmente, no mestrado, faz parte da linha de pesquisa de Pragmáticas de Imagem onde se dedica ao estudo de temáticas como o a filosofia da imagem e o filme-ensaio.
Ficha do Trabalho
Título
- Quando a paisagem esconde o rosto
Formato
- Presencial
Resumo
- A partir da aproximação das obras O Infarto da Alma (1994) e O Filho de Saul (2015), buscamos discutir o impacto da exclusão da paisagem do horror no surgimento do que o filósofo Emmanuel Lévinas (1999) chama de “rosto”. Defenderemos que ambas as obras desviam da representação esperada das vítimas, mostrando sua humanidade a partir de estratégias como o enquadramento e a profundidade de campo, para dar menos enfoque aos espaços de sofrimento e evidenciar heterotopias de afeto.
Resumo expandido
- Em sua série O infarto da alma (1994), Paz Errázuriz, fotógrafa chilena, retrata companheiros apaixonados dentro de um sanatório na pequena cidade de Putaendo do Chile. Os retratos são feitos em primeiro plano, e a partir dessa abordagem próxima, fruto de um a relação de anos com os fotografados, Errázuriz revela uma heterotopia, um bolsão de afeto em meio a um espaço de constrangimento, de retenção e separação. Os personagens de Errázuriz para o regime sensível hegemônico, são doentes, desviam do modelo de subjetividade classificado como aceitável, devem ser separados dos demais. O amor, nessa lógica, parece ser um privilégio dos sujeitos “sãos”. Os retratos de Errázuriz rasgam de cima a baixo essa ficção, no sentido rancièreano, revelando uma outra realidade que acontece a margem, onde a subjetividade hegemônica é confrontada por semelhanças, nestes seres considerados tão estranhos. Uma das fotografias, entretanto, destoa das demais. Essa imagem não é um retrato, é uma paisagem. Nela temos quatro pacientes, distantes entre si, onde predomina o desolador cenário do sanatório. O estranhamento nessa imagem é substituído pela dor, retornamos ao que se espera dos internos, o lugar da vítima.
Ao fotografar retratos em primeiro plano dos pacientes, Errázuriz exclui o espaço de sofrimento que os cerca e a partir dessa operação a fotógrafa emancipa os sujeitos e faz surgir ali um rosto, no sentido do conceito do filósofo lituano Emmanuel Lévinas (1999), um encontro com a alteridade, fazendo surgir um clamor ético no espectador. Esse confronto com o outro não ocorre na fotografia que destoa. Isso se da, defendemos, porque a paisagem engole o rosto. A paisagem é um discurso (BESSE, 2014), a arquitetura dos espaços de contenção e disciplina, segue um pensamento totalitário que gera uma paisagem totalitária. Os retratos de afeto entre os internos mostram as brechas, as fissuras nesse universo, evidenciam que existem ficções paralelas a que tenta se apresentar como o único real. Para que surja o rosto dos fotografados, nesse caso, é preciso excluir a paisagem.
Aqui podemos encontrar a obra de László Nemes, O filho de Saul (2015). O filme húngaro segue a jornada de Saul, um membro do Sonderkommando, um grupo de prisioneiros judeus, que durante a Segunda Guerra, nos campos de extermínio nazistas eram responsáveis pelas mais árduas tarefas, como a limpeza das câmaras de gás e o enterro de corpos. Um dia, após o extermínio de um grupo de prisioneiro, limpando a câmara, Saul se depara com uma criança que ainda respira. O pequeno acaba por falecer, mas Saul é tocado a ponto de reconhecer a criança como seu filho e iniciar o plano de roubar o seu corpo, salvá-lo do fogo, e lhe dar um enterro digno seguindo as tradições judaicas.
Durante todo filme a câmera está presa a Saul, acompanhamos seu percurso como se o seguíssemos, vemos seu rosto magro, sua nuca, caminhamos em sua companhia por aquele inferno. Vemos Saul esfregar o chão da câmara de gás, a água suja de sangue, mas nunca vemos os corpos, apenas a suas silhuetas, nunca vemos a paisagem em plano aberto. A profundidade de campo reduzida dá espaço a imaginação, o foco em Saul faz surgir o rosto, a paisagem aqui não pode desviar o nosso olhar, não se trata mais de um humano que é engolido, mas o espectador está ali, ele vê e imagina o horror a partir das reações de Saul, de suas expressões, seus movimentos e dos borrões e que o cercam. Para o autor Didi-Huberman (2015), em um comentário sobre o filme, apenas o agressor poderia ver esse sofrimento a distância, o enquadramento de Nemes faz o contrário, ao mesmo tempo que nos apresenta a experiência do horror vivida pelos prisioneiros judeus, oferece o mesmo que Saul busca oferecer a criança morta em meio a escuridão, dignidade. As imagens-movimento de Lázló Nemes e os retratos de Páz Errazuriz desviam do que se espera, essas vítimas deixam se de ser peças, se apresentam como os humanos que são, confrontam o espectador, revelam seu rosto.
Bibliografia
- BESSE, J. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. As cinco portas da paisagem. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2014.
BUTLER, J. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol 3. São Paulo: Editora 34, 1996.
DIDI-HUBERMAN, G. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017
DIDI-HUBERMAN, G. Sair da escuridão. Caderno de leituras n. 129, 2015.
ERRÁZURIZ, P. ELTIT, D. O infarto da alma. IMS, 2020.
FOUCAULT, M. Outros espaços. 1984
LÉVINAS, E. De outro modo que ser, o más allá de la essencia. Salamanca:
Ediciones Sígueme, 1999
RANCIÈRE, J. O trabalho das imagens. Chão da feira, 2021.
SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das letras, 2003.
Referências fílmicas
NEMES, L. O filho de Saul. [Filme] Hungria, 2015.