Ficha do Proponente
Proponente
- Rafael de Luna Freire (UFF)
Minicurrículo
- Professor no Departamento de Cinema e Vídeo e no Programa em Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da UFF. Coordenador do Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual (LUPA-UFF). É autor de inúmeras públicas sobre história do cinema brasileiro. Seu último livro é “O negócio do filme: a distribuição cinematográfica no Brasil, 1907-1915”.
Ficha do Trabalho
Título
- Apaches, malandros e cinema popular no início do século XX
Seminário
- Cinema no Brasil: a história, a escrita da história e as estratégias de sobrevivência
Formato
- Presencial
Resumo
- É inegável a influência do cinema, em fins da década de 1910, na criação de esterótipos de tipos sociais cariocas. Mas se as figuras da “melindrosa” e do “almofadinha” como esterótipos de jovens da elite são mais conhecidas, nosso foco são tipos associados às classes populares. Nesse sentido, analisaremos os “apaches” como antecessores da figura do “malandro” e exemplo dos intercâmbios culturais – inclusive intermidiáticos e internacionais – promovidos pelo cinema durante o período silencioso
Resumo expandido
- “Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso”
A letra de canção “Lenço no pescoço”, composta em 1933 pelo sambista negro Wilson Baptista, apresenta um retrato da figura hoje muito conhecida do malandro, elevado a símbolo da identidade nacional durante a Era Vargas. O objetivo desta proposta é investigar os antecedentes da representação social do malandro carioca e suas características, com ênfase, principalmente, no papel do cinema nesse processo de construção discursiva. Desse modo, iremos destacar a figura do “apache” como um antecessor do “malandro”, cuja popularidade remonta à influência dominante do cinema europeu até a Primeira Guerra.
Na segunda metade da década de 1910, o cinema foi considerado uma das grandes influencias no surgimento de tipos associados à uma nova juventude das classes médias e altas cariocas, como a “melindrosa” e o “almofadinha”. Argumentamos, porém, que essa influência não se deu somente na criação de estereótipos associados à elite. Nesse sentido, nos deteremos nos tipos associados aos cinemas populares, considerados os redutos dos apaches no Rio.
Apache era o termo através do qual se tornaram conhecidos jovens delinquentes da Paris do início do século XX, cuja imagem se popularizou mundialmente através de livros, canções e filmes (KALIFA, 2010, PERROT, 2017). No Rio de Janeiro, os apaches tornaram-se frequentes tanto em fantasias de carnaval, como nos relatos de crimes bárbaros pela imprensa. A descrição de sua aparência típica costumava incluir chapéu, camisa listrada, lenço no pescoço e navalha.
É verdade que a navalha já fora uma arma associada aos capoeiras do século XIX. Entretanto, com a intensa perseguição policial após a promulgação da República, o termo capoeira associado a um tipo de criminoso caiu em desuso (BRETAS, 1991).
Não tardaria, assim, para a navalha passar a ser identificada principalmente com o apache. Em 1919, ao descrever o assassinato de uma prostituta por seu amante, o jornal A Noite afirmava que o criminoso “andava sempre armado de navalha, a arma predileta dos ‘apaches’ do Rio, como o punhal dos ‘apaches’ parisienses”.
Justamente na segunda metade da década de 1910, o cinema trouxe particular visibilidade ao apache, por exemplo, através do enorme sucesso dos filmes estrelados pelo ator italiano Emilio Ghione e seu personagem Za-la-Mort (FREIRE, 2022). A figura romântica do apache parisiense – bandido sedutor ao qual se associavam ritmos modernos e sensuais, como o tango – tornou-se um modelo de identificação de e para espectadores de salas populares onde esses filmes obtinham grande sucesso. Um traço particular de Za-la-mort e de outros apaches cinematográficos era o lenço vermelho no pescoço, que servia também como proteção contra a lâmina dos inimigos. Em 1924, ao descrever os cafés-cantantes cariocas, espaço de sociabilidade popular, o redator de Fon-Fon notava um “mulato de lenço vermelho no pescoço metido a apache” (GOMES, 2004, p.157).
Outra evidência da ligação entre o tipo do apache e o do malandro se refere à relação com suas amantes e à cafetinagem. A expressão “amor de apache” foi muito utilizada, nas primeiras décadas do século XX, para designar a relação abusiva na qual o homem demonstraria seu suposto amor através da violência contra a mulher, geralmente associada à cafetinagem e prostituição. O mesmo sentido foi transferido para a expressão que se tornou comum, até os dias atuais, de “mulher de malandro”.
Portanto, esta apresentação irá aprofundar a hipótese da representação social do “apache” carioca ser uma espécie de elo perdido, alimentado pela influência cultural do cinema, entre os supostamente autênticos capoeiras e malandros. Trata-se, acima de tudo, de uma investigação que pretende demonstrar como os intercâmbios culturais – inclusive intermidiáticos e internacionais – promovidos pelo cinema, no período silencioso, não se restringiram apenas à elite cosmopolita, envolvendo também as classes populares.
Bibliografia
- BRETAS, Marcos. A queda do império da navalha e da rasteira (a República e os capoeiras), Estudos Afro-Asiáticos, 20, jun. 1991.
FREIRE, Rafael de Luna. O negócio do filme: a distribuição cinematográfica no Brasil, 1907-1915. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 2022.
GOMES, Tiago de Melo. Um espelho no palco. Campinas: Unicamp, 2004.
KALIFA, Dominique. Arqueologia do “apachismo”: Bárbaros e Peles-vermelhas no século XIX, Projeto História, v.40, jan-jun. 2010.
PERROT, Michelle, “Na França da Belle Époque, os ‘apaches’, primeiros bandos de jovens”. In: Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2017