Ficha do Proponente
Proponente
- Carolina Goncalves pinto (ECA – USP)
Minicurrículo
- Doutoranda e Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com especialização prática em Audiovisual pelo Le Fresnoy – Tourcoing, França, extensão em prática do documentário na La Fémis e graduada em Cinema e Vídeo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Além de pesquisadora e professora, também atua profissionalmente como realizadora e roteirista.
Ficha do Trabalho
Título
- Reinventar passados: imagem de arquivo e fabulação em Uma Longa Viagem
Formato
- Presencial
Resumo
- Ao analisar Uma Longa Viagem (2011) de Lúcia Murat, pretende-se relacionar no corpo da obra o uso de imagens de arquivo com a fabulação, de Gilles Deleuze. A busca por memórias da realizadora e de seu irmão é ponto de partida para a criação de narrativas fabuladoras, confrontadas às cartas escritas. As imagens de arquivo não figuram como registros, mas criam uma dimensão onírica. O filme é uma despedida do terceiro irmão e também um acerto de contas com o passado pessoal e político do país.
Resumo expandido
- Ao analisar Uma Longa Viagem (2011) de Lúcia Murat, pretende-se relacionar no corpo da obra o uso de imagens de arquivo com a fabulação, a partir da conceituação de Gilles Deleuze. A fabulação, conforme Deleuze, se estabelece a partir do real, mas comporta também a invenção. O cinema de fabulação não busca retratar aspectos objetivos ou subjetivos de um personagem; visa flagrar o quê o personagem se torna, a partir de seu próprio relato. O filme transita entre ficção e documentário, uma forma comum ao ensaio fílmico.
A partir da morte de um irmão, Murat inicia a realização desse filme, no qual entrevista seu outro irmão, com o intuito de recontar os eventos do passado familiar, em um período no qual o irmão entrevistado viajava ao redor do mundo e a realizadora era uma presa política. A busca por memórias da realizadora e de seu irmão é o ponto de partida para a criação de narrativas fabuladoras, que são confrontadas às cartas escritas entre os familiares, nesse passado distante. Lembranças pessoais e memórias dos registros, quando confrontados, ora se encontram, ora se desmentem. A narração deixa de ser absoluta, verídica, em oposição às potências do falso, “que substitui e destrona a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade de presentes incompatíveis ou a existência de passados não necessariamente verdadeiros.” (DELEUZE, 1985, P. 172)
As imagens de arquivo aqui não são utilizadas como registros dos acontecimentos, mas compõem cenários oníricos em cenas ficcionais. Pouco se sabe sobre a origem destas imagens. Em algumas fotos, reconhecemos o personagem em suas peregrinações ao redor do mundo. Já nas imagens em movimento, fica pouco evidente a origem desses registros. A realizadora recria, com a presença do ator Caio Blat, cenas nas quais ele lê de trechos das cartas. As imagens são projetadas ao fundo dessas cenas ficcionais, como um cenário, como uma recriação de manifestações da memória. A partir de Christa Blümlinger pensamos a estética do reemprego de imagens de arquivo em suas potencialidades mnemônicas, que provocam junto ao espectador uma evocação de suas próprias lembranças. Como a autora coloca, a reutilização de imagens surge como um traço sintomático do cinema contemporâneo, ao que acrescentamos, que este uso realizado por Murat, em particular, apaga e recria, a um só tempo, a releitura do passado. Embora essas imagens atestem sobre uma época e os lugares visitados pelo protagonista, a forma como são utilizadas reforçam a forma fabuladora que se instaura a partir das manifestações da memória.
A imagem projetada e filmada, nas cenas ficcionais nos coloca diante de uma mise-en-abîme; o filme se compõe a partir de duplos: os testemunhos narrados e as cartas escritas, o personagem ficcional e o irmão verdadeiro, as imagens projetadas e as imagens mentais. As lembranças se multiplicam em fabulações, entre os registros das cartas e as narrativas do relato face à câmera. A ruptura não está entre a ficção e a realidade, aponta Deleuze mas, , em um novo modo de narrativa que as afeta. É na passagem de um estado a outro, no qual o personagem se mostra em seu devir. “O personagem não se separa de um antes e um depois, mas o quê ele reúne na passagem de um estado a outro”. (DELEUZE, 1985, P. 196)
O relato de Murat sobre suas memórias do período em que esteve presa durante a ditadura também vem encontrar seu duplo, nas internações que seu irmão vivenciou após seu retorno ao Brasil. Os relatos da realizadora, em voz over e portanto são mais calculados do que os testemunhos do irmão, mas nem por isso, menos reveladores da narrativa que ela busca edificar sobre sua história e a História coletiva. O filme é uma despedida do terceiro irmão, falecido, mas também um acerto de contas com o passado pessoal e político do país.
Bibliografia
- ALTER, Nora M. The Essay Film – After Fact and Fiction, New York, Columbia University Press, 2018
BENJAMIN, Walter. O Narrador, in Obras Escolhidas vol. 2, tradução Sérgio Paulo
BLÜMILINGER, Christa Cinéma de Seconde Main – Esthétique du remploi dans lárt du film et des nouveaux médias, Paris, Klincksieck, 2013
CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio desde Montaigne e depois de Marker, Campinas, Papirus, 2015
DELEUZE, Gilles. L’Image Mouvement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1983
¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬_____________. L’Image Temps, Paris, Les Éditions de Minuit, 1985
MACDOUGALL, David. Films de Mémoire, in Journal des Anthopologues, nº 47/48, Printemps 1992. Anthropologie Visuelle, PP. 67-86
RANCIÈRE, Jacques. A Fábula Cinematográfica, Lisboa, Orfeu Negro, 2014
RASCAROLI, Laura. The Personal Câmera – Subjective Cinema and The Essay
SARLO, Beatriz. Tempo Passado – Cultura da memória e guinada subjetiva, Companhia das Letras, São Paulo, 2007