Ficha do Proponente
Proponente
- Vitor Zan (UFMS)
Minicurrículo
- Doutor em estudos cinematográficos pela Paris 3, professor do curso de audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, com pesquisas em cinema brasileiro e atuação técnica na área de som.
Ficha do Trabalho
Título
- “O sonho é muito pouco, eu quero é mais”, Mato seco em chamas
Formato
- Remoto
Resumo
- Três eixos principais balizam este primeiro esforço analítico diante de Mato seco em chamas: a perspectiva histórica em relação aos filmes pregressos de Joana Pimenta e Adirley Queiros; a descrição das diversas estratégias formais, ficcionais e documentais, coligadas nesse longa-metragem; e a tentativa de entender os tipos de relação (de resistência, proposição, elaboração histórica) estabelecidos entre o filme e a conjuntura social, histórica e política em que está inserido.
Resumo expandido
- Vencedor do consagrado festival Cinéma du Réel, Mato seco em chamas reforça a parceria do já veterano Adirley Queirós com a professora e documentarista portuguesa radicada nos Estados Unidos, Joana Pimenta. O veio ficcional do filme apresenta uma facção de mulheres negras que exerce suas atividades comerciais em território apocalíptico ambientado no Sol Nascente (DF), uma das maiores favelas do Brasil. O grupo liderado por Chitara, “rainha da quebrada”, e pelas ex-presidiárias Léa, sua irmã, e Andreia Vieira, candidata pelo Partido do Povo Preso (PPP), explora uma jazida clandestina de petróleo e comercializa gasolina a custos muito inferiores aos do mercado institucionalizado.
Esta apresentação propõe uma sistematização liminar a partir deste filme ainda pouco visto e comentado, fazendo-o a partir de três eixos norteadores. Primeiramente, na esteira da políticas dos autores, vislumbramos a filmografia de Joana Pimenta e Adirley Queirós em seu conjunto, colocando o longa recém-lançado em perspectiva a partir das criações pregressas dos cineastas. No caso de Adirley Queirós, a conjuração fantasiosa convive com o enraizamento irrevocável no terreno histórico da periferia de Brasília desde A cidade é uma só?. A incursão na ficção científica, também presente neste último trabalho, é inaugurada por Branco sai, preto fica, mas a presença feminina nunca havia sido tão preponderante, tanto pela co-realização com Joana Pimenta, quanto pelo trio de mulheres que assume o protagonismo da narrativa (embora a pulverização do protagonismo em figuras diversas seja traço recorrente).
Um segundo eixo consiste em delinear as principais estratégias formais de Mato seco em chamas, promotoras de interferências entre ficção e documentário. Nota-se, por exemplo, a presença de depoimentos, cujo teor concerne ora às vivências “reais” dos sujeitos históricos, ora é hackeado pela fabulação, versando sobre a trama pitoresca proposta pelos autores. Há situações dignas do cinema direto, como o show da banda Muleka 100 calcinha ou o culto evangélico a que participa Andreia Vieira. Por vezes, contudo, é o gesto ficcionalizante que engendra a poética do cotidiano, típica do documentário de observação, como no churrasco entre as parceiras, ou nos diálogos entre Chitara e Léa. Nessas situações, o viés ficcional parece criar as condições materiais (o tempo, a remuneração, o encontro) para a troca “real” entre as irmãs: demonstração de afeto e elaboração coletiva de narrativas e conflitos.
Mato seco em chamas se torna também um filme-processo quando anuncia que Léa “rodou” mais uma vez, foi presa novamente, em plena realização do documentário, o que reposiciona e adensa a construção do filme. Arquivos policiais de sua prisão são mobilizados pela montagem, evidenciando a narrativa oficial, institucional, como diametralmente oposta àquela do filme. É isenta de historicidade, desconectada de um contexto, destituída de imaginação, exclusivamente apoiada em fatos simplistas.
Nossa terceira e última inquietação talvez seja a mais fundamental, uma vez que responde à problemática explicitada não apenas neste filme mas em toda a trajetória dos realizadores. Trata-se de examinar a maneira com que o filme se relaciona, por meio de sua composição estética, com a conjuntura social, histórica e política em que está inserido. A que ele resiste? O que propõe? Como elabora a história? Contentamo-nos, por enquanto, em apontar uma contradição constitutiva da trama. Por um lado, assistimos a um grupo de mulheres negras, categoria duplamente marginalizada, tomar conta dos meios de produção e adquirir certa autonomia. Por outro, esse mesmo grupo reproduz uma série de comportamentos das instâncias hegemônicas que as oprimiram historicamente: organiza-se hierarquicamente, cria concentração de poder, exerce violência, objetiva o lucro, explora uma classe inferior (a dos entregadores) e opera em defesa da família, pela qual as mães soberanas estão dispostas a lutar com unhas e dentes.
Bibliografia
- GOUVÊA, Luiz Alberto Campos, Brasília: a capital da segregação e do controle social: uma avaliação da Ação governamental na área da habitação, Annablume, 1995.
HOLSTON, James, A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia, Companhia das Letras, 2010.
MESQUITA, Cláudia. “Um drama documentário?: atualidade e história em A cidade é uma só?”, in Devires, v. 8, n. 2, jul/dez, 2011.
SANTOS, Milton, Por uma outra globalização : do pensamento único à consciência universal, Record, 2000.