Trabalhos Aprovados 2022

Ficha do Proponente

Proponente

    Vitor Zan (UFMS)

Minicurrículo

    Doutor em estudos cinematográficos pela Paris 3, professor do curso de audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, com pesquisas em cinema brasileiro e atuação técnica na área de som.

Ficha do Trabalho

Título

    “O sonho é muito pouco, eu quero é mais”, Mato seco em chamas

Formato

    Remoto

Resumo

    Três eixos principais balizam este primeiro esforço analítico diante de Mato seco em chamas: a perspectiva histórica em relação aos filmes pregressos de Joana Pimenta e Adirley Queiros; a descrição das diversas estratégias formais, ficcionais e documentais, coligadas nesse longa-metragem; e a tentativa de entender os tipos de relação (de resistência, proposição, elaboração histórica) estabelecidos entre o filme e a conjuntura social, histórica e política em que está inserido.

Resumo expandido

    Vencedor do consagrado festival Cinéma du Réel, Mato seco em chamas reforça a parceria do já veterano Adirley Queirós com a professora e documentarista portuguesa radicada nos Estados Unidos, Joana Pimenta. O veio ficcional do filme apresenta uma facção de mulheres negras que exerce suas atividades comerciais em território apocalíptico ambientado no Sol Nascente (DF), uma das maiores favelas do Brasil. O grupo liderado por Chitara, “rainha da quebrada”, e pelas ex-presidiárias Léa, sua irmã, e Andreia Vieira, candidata pelo Partido do Povo Preso (PPP), explora uma jazida clandestina de petróleo e comercializa gasolina a custos muito inferiores aos do mercado institucionalizado.
    Esta apresentação propõe uma sistematização liminar a partir deste filme ainda pouco visto e comentado, fazendo-o a partir de três eixos norteadores. Primeiramente, na esteira da políticas dos autores, vislumbramos a filmografia de Joana Pimenta e Adirley Queirós em seu conjunto, colocando o longa recém-lançado em perspectiva a partir das criações pregressas dos cineastas. No caso de Adirley Queirós, a conjuração fantasiosa convive com o enraizamento irrevocável no terreno histórico da periferia de Brasília desde A cidade é uma só?. A incursão na ficção científica, também presente neste último trabalho, é inaugurada por Branco sai, preto fica, mas a presença feminina nunca havia sido tão preponderante, tanto pela co-realização com Joana Pimenta, quanto pelo trio de mulheres que assume o protagonismo da narrativa (embora a pulverização do protagonismo em figuras diversas seja traço recorrente).
    Um segundo eixo consiste em delinear as principais estratégias formais de Mato seco em chamas, promotoras de interferências entre ficção e documentário. Nota-se, por exemplo, a presença de depoimentos, cujo teor concerne ora às vivências “reais” dos sujeitos históricos, ora é hackeado pela fabulação, versando sobre a trama pitoresca proposta pelos autores. Há situações dignas do cinema direto, como o show da banda Muleka 100 calcinha ou o culto evangélico a que participa Andreia Vieira. Por vezes, contudo, é o gesto ficcionalizante que engendra a poética do cotidiano, típica do documentário de observação, como no churrasco entre as parceiras, ou nos diálogos entre Chitara e Léa. Nessas situações, o viés ficcional parece criar as condições materiais (o tempo, a remuneração, o encontro) para a troca “real” entre as irmãs: demonstração de afeto e elaboração coletiva de narrativas e conflitos.
    Mato seco em chamas se torna também um filme-processo quando anuncia que Léa “rodou” mais uma vez, foi presa novamente, em plena realização do documentário, o que reposiciona e adensa a construção do filme. Arquivos policiais de sua prisão são mobilizados pela montagem, evidenciando a narrativa oficial, institucional, como diametralmente oposta àquela do filme. É isenta de historicidade, desconectada de um contexto, destituída de imaginação, exclusivamente apoiada em fatos simplistas.
    Nossa terceira e última inquietação talvez seja a mais fundamental, uma vez que responde à problemática explicitada não apenas neste filme mas em toda a trajetória dos realizadores. Trata-se de examinar a maneira com que o filme se relaciona, por meio de sua composição estética, com a conjuntura social, histórica e política em que está inserido. A que ele resiste? O que propõe? Como elabora a história? Contentamo-nos, por enquanto, em apontar uma contradição constitutiva da trama. Por um lado, assistimos a um grupo de mulheres negras, categoria duplamente marginalizada, tomar conta dos meios de produção e adquirir certa autonomia. Por outro, esse mesmo grupo reproduz uma série de comportamentos das instâncias hegemônicas que as oprimiram historicamente: organiza-se hierarquicamente, cria concentração de poder, exerce violência, objetiva o lucro, explora uma classe inferior (a dos entregadores) e opera em defesa da família, pela qual as mães soberanas estão dispostas a lutar com unhas e dentes.

Bibliografia

    GOUVÊA, Luiz Alberto Campos, Brasília: a capital da segregação e do controle social: uma avaliação da Ação governamental na área da habitação, Annablume, 1995.
    HOLSTON, James, A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia, Companhia das Letras, 2010.
    MESQUITA, Cláudia. “Um drama documentário?: atualidade e história em A cidade é uma só?”, in Devires, v. 8, n. 2, jul/dez, 2011.
    SANTOS, Milton, Por uma outra globalização : do pensamento único à consciência universal, Record, 2000.