Trabalhos Aprovados 2022

Ficha do Proponente

Proponente

    Alessandra Soares Brandão (UFSC)

Minicurrículo

    Professora e coordenadora do curso de cinema da UFSC.

Ficha do Trabalho

Título

    Cinema como lar cuir: uma curadoria reparativa do cuidado entre mulher

Seminário

    Cinemas mundiais entre mulheres: feminismos contemporâneos em perspectiva

Formato

    Presencial

Resumo

    Na perspectiva interseccional e cuir do cuidado de si e das outras, este trabalho se constitui como uma curadoria reparativa. Busca imagens que figuram alianças políticas e afetivas entre travestis, lésbicas e trans, produzindo espaços de acolhimento e pertencimento, que fazem do próprio cinema um lar queer, insólito e excêntrico, em um cotidiano permeado de afeto e de práticas de cuidado. Além de colocar em evidência as lutas diárias, lado a lado, em um engajamento ativo com o mundo das outras

Resumo expandido

    A partir de uma perspectiva interseccional, decolonial e cuir do cuidado de si e das outras, esse trabalho propõe um mapeamento de filmes que colocam travestis, mulheres lésbicas e trans em imagens que promovem seus encontros e experiências cotidianas permeadas de afeto e, sobretudo, de cuidado. Chamo esse gesto de inventariar tais imagens de uma curadoria reparativa, que, no esteio da “prática reparativa” de Eve Sedgewick (2003), coloca-se na contramão de narrativas que ressaltam o trauma e a violência das existências à margem. Uma curadoria reparativa, portanto, propõe-se a buscar imagens do cuidado entre mulheres e pessoas que se identificam com o feminino, colocando em evidência formas de sobrevivência pautadas por engajamentos políticos e afetivos, pelo direito ao desejo dissidente e ao estar no mundo, a despeito das condições periféricas em que vivem as personagens, como em Perifericu (2019), filme Rosa Caldeira, Vita Pereira, Nay Mendl e Stheffany Fernanda.
    É esse gesto de cuidar da outra e de ser capaz de resistir lado a lado e “viajar ao mundo da outra”, como propõe Maria Lugones (2003), que de fato constrói uma política de coalizão. Além de desafiar a cisheteronormatividade racista do chamado “capitalismo civilizatório” (VERGÈS, 2020) —que reduz o trabalho do cuidado ao papel da mulher sob uma lógica binária de gênero e, sobretudo, de subalternidade pela raça—, o cinema aqui analisado produz uma torção queer, ou seja, coloca no centro da questão a necessidade do que Maria Galindo chama de “aliança insólita” (2013) porque alinha afetiva e politicamente mulheres de diferentes contextos de pertencimento e que sofrem opressões muldimensionais, mas que se encontram e se ajuntam em lutas pautadas por uma condição periférica e de vulnerabilidade que se dá por suas existências como mulheres cuir, fora do padrão e das hegemonias de gênero e sexualidade. O termo mulher, inclusive, é potencializado e expandido para dar conta das diversas configurações e modos de vida dados no feminino em BlasFêmea (2017), de Linn da Quebrada e Marcelo Caetano.
    É interessante pensar que, diante de tanta situação de morte, de trauma, de violência e de opressão, podemos (re)conhecer o “impulso político ativante” (RICH) de um cinema que oferece mundos possíveis e potências de vidas que desafiem o caráter debilitante do espetáculo da dor, para promover encontros marcados por uma ética do cuidado e do amor entre mulheres. Nessa curadoria reparativa, quero ressaltar o cinema cuir brasileiro que entende que pode (e talvez precise) “enviadecer” para acolher as existências lésbicas, sapatonas, bissexuais, trans, não-bináries, viadas, travestis e +, como está posto por Linn da Quebrada em Bixa Travesty (2018), de Claudia Priscilla e Kiko Goifman.
    Por fim, se um lar cuir é aquele que reconfigura as relações de pertencimento, redimensionando e ressignificando o conceito de família (AZEVEDO, 2016), para além do modelo cisheteropatriarcal, o cinema que se faz lar cuir é aqui entendido como um espaço audiovisual que abriga e projeta essa possibilidade em filmes que naturalizam o cuidado entre mulheres que existem e resistem à margem. São cenas de banhos, de cabelos sendo cortados, pintados, trançados, de conversas e riso coletivo, de resgate de manas assediadas, de abraços de proteção, de afago e sexo coletivo que fazem de filmes como Perifericu, BlasFêmea, Bixa Travesty, Quebramar e Uma paciência selvagem me trouxe até aqui que fazem do cinema um espaço ocupado por um cuidado cuir que nos faz desejar habitar suas tranças e nos perder em seus cafunés.

Bibliografia

    AZEVEDO, Adriana. Reconstruções queers – por uma utopia do lar. Tese. Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, PUC- Rio, Rio de Janeiro, 2016.

    LUGONES, María. Pilgrimages: theorizing coallition against multiple oppressions, 2003.

    SEDGWICK, Eve K. Touching feeling: affect, pedagogy, performativity. Durham and London: Duke University Press, 2003.

    SOUSA, Ramayana; BRANDÃO, A. Corpas-Enqueerzilhadas e alianças insólitas no Cinema Brasileiro”. Revista Visuais 7 (2). Campinas, 2021.

    SOUSA, Ramayana; BRANDÃO, A. Inventário de uma infância sapatão em um mundo de imagens. Rebeh. 3 (9), 2020.

    VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. 2020.