Trabalhos Aprovados 2022

Ficha do Proponente

Proponente

    Ilma Carla Zarotti Guideroli (UNIFESP)

Minicurrículo

    Doutoranda em História da Arte pela Unifesp com a pesquisa Arte e política da imagem e da montagem: um percurso no cinema de arquivo de Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian (bolsa Capes). Mestre em História da Arte pela mesma instituição com a dissertação Natureza Morta, de Susana de Sousa Dias: políticas e ritornelos da imagem (2020). Mestre em Artes Visuais pela Unicamp com a dissertação Entre mapas, entre espaços: itinerários abertos (2010). Graduada em Educação Artística pela Unicamp.

Ficha do Trabalho

Título

    Do Pólo ao Equador, de Lucchi e Gianikian: A Violência das Esfinges

Seminário

    Cinema experimental: histórias, teorias e poéticas

Formato

    Presencial

Resumo

    O trabalho analisará o filme Do Pólo ao Equador (1986) dos diretores Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian, especificamente os blocos Esfinge Branca e Esfinge Negra do Barão Franchetti. São trechos dedicados respectivamente a caçadas de animais polares e aos safáris, quanto aos quais buscaremos sublinhar a atualidade de aspectos relacionados à violência colonial e à problematização natureza-cultura tendo em vista a condição de um cinema experimental alicerçado em uma montagem singular.

Resumo expandido

    Do Pólo ao Equador é o primeiro longa-metragem da dupla de diretores italianos Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian. Foi produzido a partir do filme homônimo do realizador Luca Comerio, um documentário 16 milímetros encontrado em um antigo laboratório em Milão, armazenado indevidamente e em estado precário de conservação. A versão de Comerio compilava cenas capturadas na virada do século XIX para o XX e teria sido montado possivelmente no final dos anos 1920.
    Esses registros diziam respeito à conquista e expansão colonial em diferentes latitudes, numa busca “aventureira” pelo exótico e pelo estrangeiro, incluindo duras cenas de caçadas e processos de subjugação de povos, além das tomadas de soldados italianos durante a Primeira Guerra Mundial. A versão de Do Pólo ao Equador reelaborada por Ricci Lucchi e Gianikian foi dividida em dez blocos, com passagens sem indicações ou marcações diretas. A catalogação e edição dos materiais foi bastante complexa e demorada, não somente pelo trabalho de refotografar as bobinas originais, mas também por toda a pesquisa demandada.
    É importante pontuar o caráter heterogêneo do longa-metragem, em que a maioria das cenas foi capturada pouco antes da Primeira Guerra Mundial; os diversos estratos de violência, opressão e dominação são tornados visíveis conforme o filme avança. A manipulação das imagens e a montagem fazem emergir o contexto de crueldade, que termina por desmascarar certa ideologia hegemônica das imagens, marcadas em particular por valores caracteristicamente estabelecidos tais como civilização, progresso e soberania.
    O segundo bloco do longa-metragem, nomeado de A Esfinge Branca, diz respeito às expedições à Antártica para caçada de animais polares. A cena de abertura mostra o gelo sendo rasgado conforme avança o navio, seguida por animais sendo atingidos por armas de fogo e harpões, içados ao convés do navio. Já a parte dos safáris corresponde ao nono bloco, nomeado A Esfinge Negra do Barão Franchetti, na qual o referido caçador é filmado em Uganda como um desbravador em meio à savana, atirando nos animais e posando triunfante ao lado de seus corpos. Nessas cenas de caçadas, os gestos coreografados estão presentes em um roteiro que se repete: o homem branco europeu invade o espaço como colonizador. Executa uma série de movimentos performáticos à procura de suas vítimas: observar através dos binóculos, aproximando-se aos poucos; mirar e atirar; confirmar a morte do animal; posar segurando a cabeça ou o corpo do cadáver; por fim, levar alguns dos animais mortos inteiros – possivelmente pensando em embalsamá-los para confirmar seu feito “heroico” e deixá-los para a posteridade. Em tais narrativas “heroicas”, o protagonismo é sempre da figura personificada pelo homem branco europeu, justificado e “absolvido” pela ideia de progresso e de ciência, o que resta por funcionar como álibi para exterminar outros povos e animais considerados selvagens.
    Em Do Pólo ao Equador, Ricci Lucchi e Gianikian, por meio dos procedimentos de montagem adotados, executam uma série de intervenções – como reenquadramentos e velocidade retardada – que podem mostrar faces outras, para além desses discursos hegemônicos supostamente vitoriosos e neutros. Assim, o urso que cai após levar um tiro e logo em seguida consegue se reerguer, ainda que brevemente; ou ainda o veado que luta para se livrar das mãos do caçador que lhe segura violentamente pelos chifres, nesse sentido podem ser compreendidos enquanto atos momentâneos de resistência, os quais, graças às operações dos diretores, são visibilizados. Uma vez escolhendo analisar as cenas de caçadas, nossa hipótese é que aí estão também contidos alguns dos germes da violência que culminaria na Primeira Guerra Mundial. Em todo caso, não se trata somente de mostrar e apontar esses gestos bárbaros, mas sobretudo de buscar exibir outras perspectivas possíveis a partir dessas imagens.

Bibliografia

    CÉSAIRE, Aimé. Discursos sobre o colonialismo. Tradução: Anísio Garcez Homem. Santa Catarina: Letras Contemporâneas, 2020.
    DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido. Tradução: Márcia Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
    GIANIKIAN, Yervant; LUCCHI, Angela Ricci. Notre caméra analytique: Mise en catalogue des images et objets. Paris: Ed. Post-éditions/ Centre Pompidou, 2015.
    GIANIKIAN, Yervant; LUCCHI, Angela Ricci. Our analytical aamera. In: Found Footage Magazine (Special Issue on Yervant Gianikian & Angela Ricci Lucchi). Edição: César Ustrarroz, n.3, Mar. 2017.
    NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
    TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Tradução: Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya, 2016.
    YERVANT Gianikian & Angela Ricci Lucchi. Org.: Nuno Sena. Lisboa: Cinemateca portuguesa – Museu do cinema, 2001. Catálogo de exposição.