Trabalhos Aprovados 2022

Ficha do Proponente

Proponente

    Bruno Fabri Carneiro Valadão (UFRJ)

Minicurrículo

    Doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ e realizador audiovisual. Ministrou aulas de jornalismo, cinema e documentário na PUC-Minas e de crítica à noção de “direitos humanos” na Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ

Ficha do Trabalho

Título

    É impossível amar com fome: figurações da “revolução menor” em Glauber

Formato

    Presencial

Resumo

    Este início de século se apresenta como uma coleção de sortilégios em que o futuro se tornou fonte de medo, em contraposição aos modernismos de antes, grávidos de expectativas. Mas Glauber Rocha parece ter algo a ensinar ainda hoje: diante do fracasso, o que resta? As personagens Rosa e Sara (de Deus e o diabo… de 1964 e de Terra em transe de 1967) nos ensinariam sobre uma “revolução menor” por vir, em que o voluntarismo daria lugar ao que poderia haver de mais comum e impessoal em nós.

Resumo expandido

    O cinema de Glauber Rocha pode ser, neste contexto atual, uma crítica radical das condições de uma mudança social e política futuras: sua “problematização”, através das figuras de alguns de seus heróis e anti-heróis como o vaqueiro-cangaceiro Manuel-Satanás, Corisco, Antônio das Mortes (Deus e o diabo na terra do sol, 1964) e o poeta-político Paulo Martins (Terra em transe, 1967), nos dizem muito sobre o desenlace frustrante da pulsão revolucionária até aquele momento histórico: aquilo que Ismail Xavier (2012) chamou de “epitáfio” que estaria presente na própria “montagem vertical som-imagem” do filme, em um ensaio do professor e pesquisador sobre o longa-metragem de 1967. Em Deus e o diabo… as dobras da montagem não cessam de se desdobrarem entre os polos “sertão” e “mar” (opressão e liberação), mas que se mostram, ao fim e ao cabo, incapazes de dar conta de alguma mudança: a construção dos planos e sua concatenação revelam ao espectador que tais polos inexistem objetivamente. “A terra assim mal dividida” é do homem, não é de Deus nem do diabo, como disse o cantador-narrador de Deus e o diabo… Não há bem ou mal, mas a imanência da vida mesmo, das lutas, e de suas contradições e dificuldades objetivas, que vão para muito além de um inferno de binarismos e de dialéticas, cujos termos não condizem com a realidade bruta das coisas de um mundo fundamentalmente material, indiferente aos idealismos de personagens extremamente atormentados, crentes e voluntariosos. Heróis perdidos e sem função num mundo que sente fome.
    O mundo faminto é o mundo sem finalidade: as grandes linhas da revolução se perdem diante da tragédia da vida. Glauber, consciente disso ou não, não abre mão de existências aparentemente secundárias, algo “subterrâneas”, na tessitura de seus filmes da década de 1960. As personagens Rosa, Dadá (Deus e o diabo…) e Sara (Terra em transe) são as figurações projetadas do mundo que tem fome, e que podem surgir nos momentos-chave em que seus companheiros estão prestes a se imolarem, seja por um pedaço de terra no céu, seja em nome da “beleza e da justiça”. Elas não buscam os contornos grandiosos do “belo” e do “sublime”, mas tão-somente uma revolução “menor”, ou seja, uma revolução que recuperaria, em sua inteireza, um renovado conceito de “comunidade” e do que haveria de mais “impessoal no indivíduo” em nome da coletividade, mas sem deixar de tomar o indivíduo em todas as sua dimensões, não necessariamente “privadas”: renovação através de uma potência radicalmente humana, cuja fonte nos remete aos gregos dos épicos homéricos, relidos pela filósofa e ativista francesa Simone Weil (1996), principalmente a Ilíada.
    Para Weil, a guerra (metafórica ou real) nos esvazia, faz de nós, fantoches dos poderosos. Tanto Manuel quanto Paulo Martins são esvaziados e preenchidos quase que concomitantemente em suas subjetividades através dos mecanismos do poder em seus respectivos contextos. O heroísmo torna-se a manifestação da impotência diante da fome. Se, de acordo com Glauber Rocha, “as mulheres do cinema novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome” (ROCHA, 2004, p. 66) então a luta delas é a mais justa, a mais “sagrada”. Pois o amor “a que tudo une”, como disse o governador Vieira em sua capitulação, só acontece quando nos damos o direito de nos sentirmos tranquilos, mesmo diante das maiores adversidades, pois “participar, ser enlaçado, comunicar, receber e doar, receber esse amor” (SAINT-EXUPÉRY, 1986, p. 108) é o grande milagre da multiplicação de laços entre as pessoas. A riqueza está nos nas linhas que nos une, mesmo diante do fracasso (e, por vezes, da morte) iminente.
    Eis o esboço de uma “ética” de uma outra revolução que podemos depreender dos filmes de Glauber Rocha neste período histórico em que estamos inseridos e de sua utilidade e urgência fundamentais, pois a fome aumentou exponencialmente sua voracidade nas primeiras décadas do nosso século.

Bibliografia

    BERARDI, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu, 2019.
    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
    HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude. War and Democracy in the Age of Empire. Nova York: Penguin, 2004.
    LUXEMBURGO, Rosa. Textos escolhidos vol. 2 (1914-1919). (Isabel Loureiro, org.) São Paulo: Editora Unesp, 2018.
    ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004
    SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Pilote de guerre. Paris: Folio-Gallimard, 1986.
    WEIL, Simone. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. (Ecléa Bosi, org.) São Paulo: Paz & Terra, 1996.
    XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
    XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007.