Ficha do Proponente
Proponente
- Daniel Feix (UFRGS)
Minicurrículo
- Doutorando pela UFRGS (ingresso em 2021) com o projeto “De Capitão Nascimento a Jair Bolsonaro: sintomas do fascismo no cinema brasileiro 2007-2018”. Mestre em Comunicação pela PUCRS (2018). Jornalista e crítico de cinema (jornal Zero Hora) com atuação em Porto Alegre. Autor da biografia “Teixeirinha – Coração do Brasil” (2019). Integra o Grupo de Pesquisa em Estética e Processos Audiovisuais – Artis/UFRGS (CNPq). E-mail: danielfeix7@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6844155295030442
Ficha do Trabalho
Título
- De Javé ao Hotel Cambridge: comparação à luz da ascensão do fascismo
Formato
- Presencial
Resumo
- Este trabalho apresenta parte da pesquisa de doutorado sobre os sintomas do fascismo nos filmes brasileiros lançados pré-eleição de Bolsonaro no país. Admitindo que o cinema antecipa sentimentos coletivos ainda não revelados situados na dimensão do inconsciente, propõe-se uma análise comparativa na qual características do ideário fascista se desvelam em um filme a partir do olhar cruzado com outro. Os títulos escolhidos, aqui, são Narradores de Javé e Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé.
Resumo expandido
- Espelho psicológico de uma nação, conforme Kracauer (1988), o cinema tem a capacidade de revelar pormenores das relações sociais imperceptíveis fora dos filmes. É capaz de dar a ver “profundas camadas da mentalidade coletiva situadas abaixo da consciência” (p.18), desvelando crenças escondidas e comportamentos escamoteados no convívio social. Em raciocínio sobre a potência reveladora da imagem, Didi-Huberman (2018) trabalha com a ideia de que esta “joga luz sobre o que está à sombra”, indicando que o registro fílmico, mais do que uma função reveladora, tem “uma disfunção, uma doença crônica”, pois aponta as enfermidades de uma sociedade, o que justifica o “mal-estar permanente da cultura visual” (p. 26). Os filmes iluminam doenças que estão à sombra e, por isso, a ponto de aflorar na sociedade.
Essa premissa permite vislumbrar o cinema como antecipador de tendências que, por ora, habitam apenas o inconsciente da sociedade. É o que faço no doutorado na UFRGS, em pesquisa que investiga sintomas do fascismo bolsonarista antevistos pelos filmes brasileiros dos anos imediatamente anteriores à ascensão de Jair Bolsonaro ao poder no país (2018). Nesse processo, interessa-me a descoberta de anseios, angústias e outras enfermidades então desconhecidas inclusive dos autores dos filmes. As imagens por estes produzidas podem dizer mais sobre o contexto em que se inserem do que eles próprios conseguem controlar.
Para que as sombras sejam de fato iluminadas, recorro a uma metodologia baseada na ideia de “constelação” esboçada por Benjamin (1984, 1987) e desenvolvida por comentadores como Botelho (2012), Löwy (2005) e Otte e Volpe (2000), culminando em um método de análise comparativa similar ao proposto por Souto (2020) segundo o qual um objeto ajuda a ver algo de outro, como se o esclarecesse, em um processo de cotejamento de via dupla. Em outros termos, um sintoma do fascismo bolsonarista é mais claramente desvelado em um filme se este for analisado comparativamente a outro(s), e vice-versa. Posto que, segundo os teóricos do fascismo (Eatwell, 2003; Griffin, 2015; Paxton, 2007), a ideologia fascista tem características múltiplas e complementares, algumas discretas, os sintomas se tornam mais (e melhor) visíveis com esse olhar direcionado e multi-iluminado.
Nesta comunicação, a proposta é apresentar um exemplo desse olhar com a iluminação cruzada entre dois filmes de Eliane Caffé: Narradores de Javé (2003) e Era o Hotel Cambridge (2016). Ambos abordam a luta de grupos de pessoas por um lugar para viver – um povoado prestes a ser submerso por uma represa no primeiro filme, uma ocupação urbana no segundo. Um olhar inicial talvez não detectasse características do fascismo nesses dois filmes, porém, a partir da análise comparativa direcionada a detectá-las, as conclusões são diferentes. Nesse particular, seguindo o princípio benjaminiano segundo o qual um objeto do passado (Narradores de Javé) pode ser reacendido em seu significado se cotejado com outro de um novo tempo (Era o Hotel Cambridge, lançado 13 anos depois), constata-se que sintomas do fascismo que apareciam com discrição no primeiro filme ficam mais evidentes no segundo. E essa evidência ajuda a detectar os sintomas do primeiro.
Um exemplo é o desprezo de pessoas em posição social privilegiada pelos grupos marginalizados, tema não central em Javé e que aparece explicitamente em Hotel Cambridge, na sequência da leitura dos comentários de internet sobre a ocupação. Outro exemplo: a posição do artista/criador/intelectual, uma figura com aura de destaque na sociedade de Javé e ordinária em sua inserção no Hotel Cambridge – o que vai ao encontro da desmistificação do processo de construção do pensamento no ambiente fascista, conforme Adorno (2019).
Eatwell, Paxton (op. cit.) e o próprio Adorno estão entre os autores que enumeram as características do fascismo, parte delas, como os exemplos aqui citados, presentes nos dois filmes, visíveis a partir do olhar comparativo entre ambos.
Bibliografia
- ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
______. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BOTELHO, Leticia. Walter Benjamin e as imagens da história. Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 1, pp. 104-122, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Curitiba: Medusa, 2018.
EATWELL, Robert. Fascism: a history. Londres: Pimlico, 2003.
GRIFFIN, Roger. The nature of fascism. Abingdon: Routledge, 2015.
KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler – Uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
OTTE, Georg; VOLPE, Miriam. Um olhar sobre o pensamento de Walter Benjamin. Fragmentos, Florianópolis, n. 18, pp.35-47, 2000.
PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.