Ficha do Proponente
Proponente
- Pollyane Silva Belo (UERJ)
Minicurrículo
- Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Estudos de Mídia e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde foi bolsista Faperj e Faperj Nota 10. Coordena o Grupo de Estudos sobre a Mestiçagem no Brasil e é membra do Grupo de Estudos sobre Comunicação, Cultura e Sociedade (GRECOS, UFF) e do Grupo Comunicação, Arte e Redes Sociotécnicas (TRAMA, UERJ).
Ficha do Trabalho
Título
- Arquivo “Aquarius”: a obliteração como afeto que serve à brancura
Formato
- Presencial
Resumo
- Em sua versão jovem, Clara, a protagonista de Aquarius (2016, Kleber Mendonça) é interpretada por Bárbara Colen, uma mulher autodeclarada negra, e, quando envelhece, é vivida por Sônia Braga, uma mulher autodeclarada branca. O texto apresenta a recusa dos traços racializados não-brancos e a conveniente mediação estética-ético-política entre a brancura e negrura como um afeto aglutinador que corta o tempo linear de concepção da obra.
Resumo expandido
- Sara Ahmed (2004) ao tomar o afeto sob a égide das economias afetivas, aponta-o como construtor de realidades particulares, não apenas como uma disposição psicológica, mas como mediador da “relação entre o psíquico e o social, e entre o individual e o coletivo” (AHMED, p. 119). O afeto, nesta perspectiva, cria uma aderência entre símbolos e figuras, “colando” (sticking) duas ou mais singularidades em um mesmo guarda-chuva de sentido, e gera, desse modo, um efeito de coerência que ressoa na ideia de “coletivo”. Sendo assim, a inflexão realizada sobre o conceito de afeto se distancia de sua capacidade de habitar uma pessoa ou uma figura positivamente – não é essencialmente sobre aquilo que causa certa emoção em determinada pessoa -, é sobre o afeto “aproximar” (bind) pessoas, figuras e sentidos, criando efeito no real.
Nesta comunicação, buscaremos traçar dentre elementos intra e extra-fílmicos, dinâmicas afetivas que aproximam as figuras de Bárbara Colen e Sônia Braga, considerando a escalação das duas mulheres para interpretar a mesma personagem em diferentes momentos da vida, no longa-metragem Aquarius (2016, Kleber Mendonça). Este movimento é feito pois visa apontar o desprezo pelo imperativo estético que envolve as duas figuras: o fato de Braga ser uma mulher branca, e Colen, uma mulher negra de pele clara.
O método aplicado remete à abordagem materialista da imaginação composicional (SILVA, 2016). Essa metodologia suspende o tempo linear e a categorização (determinabilidade) midiática que separa o filme de seus respectivos arquivos satélites – uma notícia de jornal, fotos promocionais das atrizes e acervo novelístico -, a fim de trazer à tona parte do afeto que “cola” e, subsequentemente, apazigua a negrura de Colen. A leitura acerca deste caso como uma “composição (decomposição ou recomposição), sempre como já um momento, que é uma composição singular, daquilo que também constitui ‘o que aconteceu e o que ainda está para acontecer’” (SILVA, 2016, p. 409), tenta explicitar o embranquecimento nacional como economia afetiva que corta o tempo linear. Logo, a memória racista brasileira é um já/agora, a partir da cola afetiva que compõe uma experiência estética de aproximação radical entre Bárbara Colen e Sônia Braga, (re)contribuindo para e reencenando o apagamento de corpos-subjetividades e símbolos não-brancos.
Tal apagamento é acionado por Silva (2006) como a lógica da obliteração, isto é, o processo histórico, científico, econômico, jurídico, e erótico, de diluição e, posteriormente, aniquilação de populações não-brancas no Brasil. Partindo da tese de Gilberto Freyre (1933) que institui o mestiço como produto do desejo destrutivo do colonizador focado nas mulheres não-brancas e, ao mesmo tempo, como sujeito nacional de reiteração pós-colonialista brasileira, Silva aponta para o valor estratégico e histórico que a miscigenação ocupa como ferramenta política/simbólica do embranquecimento da população nacional. Tamanha ideologia, contribui intersubjetivamente para a subalternização racial negra diante daquele que é transparente (a branquitude/brancura) para a violência racial.
Destarte, mapear o desejo destrutivo e lógica da obliteração apenas “[n]o que foi posto em cena” (SAMPAIO; PRYSTON, 2022, p.15) nas imagem da filmografia nacional mantém o debate a nível estrutural e sequencial (dentro do tempo moderno/colonial). A proposta neste artigo é pensar em nível molecular, ou seja, como a matéria negra mestiça que na sua reencenação através do tempo continua se decompondo quando colide com o afeto obliterador da negrura (a brancura), afeto que habita as imagem fílmicas e suas dobras não-figurativas. Não ignoramos a mise-en-scène, no entanto, se o projeto de embranquecimento nacional foi planejado para um futuro utópico branco (LACERDA, 1911), precisamos imaginar “o que acontece sem o tempo” (SILVA, 2016, p. 410) e sem dissociações conceituais sobre imagens e elementos que trabalham em rede para embranquecer uma mulher negra.
Bibliografia
- AHMED, S. Affective Economies. Social Text 22, no. 2, p. 117–39, 2004.
AQUARIUS. Direção: Kleber Mendonça Filho. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2016. (145 min)
FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala. [1933]. 48ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2003.
LACERDA, J. [1911]. Sobre Mestiços no Brasil. SCHWARCZ, L. In: Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco. História, Ciências, Saúde, v.18, n.1, jan.-mar, p. 225-242, 2011.
SAMPAIO, L. ; PRYSTON, A. Desejos coloniais: a fantasia erótica de Gilberto Freyre. Contracampo, Niterói, v. 41, n. 1, p. 1-17, jan./abr. 2022.
SILVA, D. À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo. Estudos Feministas. Florianópolis, UFSC, v. 14, n. 1, pp. 61-83, 2006.
________. O evento racial ou aquilo que acontece sem o tempo. [2016]. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (orgs.). Histórias afro-atlânticas: vol. 2 antologia. São Paulo: Masp, 2018.