Ficha do Proponente
Proponente
- IVAN CAPELLER (UFRJ)
Minicurrículo
- Ivan Capeller é técnico de som direto para cinema e televisão e professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). É formado em cinema pelo curso de Comunicação Social do Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, área na qual obteve o mestrado e o doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM/UFF).
Ficha do Trabalho
Título
- Kubrick com Ravel: a valsa como signo de uma impossibilidade
Formato
- Presencial
Resumo
- Enquanto o poema sinfônico La Valse, de Ravel, apresenta a impossibilidade estrutural inerente à valsa como uma forma musical regular, três filmes de Kubrick evocam a impossibilidade presente na valsa como o índice sonoro de uma regularidade impossível: impossível regularidade da tecnologia e da linguagem, em 2001 – uma Odisséia no Espaço; impossível regularidade do estado e da sociedade n’A Laranja Mecânica; impossível regularidade das noções de subjetividade e de sexualidade em Eyes Wide Shut.
Resumo expandido
- “La Valse” é um poema sinfônico composto por Ravel logo após a 1ª Guerra Mundial com cerca de 12min de duração. “La Valse” nos apresenta a forma musical “valsa” como um anseio recorrente da orquestra que é sempre diferido, interrompido, inacabado ou simplesmente não desenvolvido de forma propriamente “concertante”. Não há um único tema melódico perfeitamente acabado e sucessivamente retomado pelas diversas seções da orquestra em um crescendo inexorável, como no “Boléro”; há uma série cumulativa de idas e vindas melódicas que se superpõem e se anulam reciprocamente, aliada às marchas e contramarchas rítmicas que ora introduzem, ora interrompem as diversas seções da orquestra. A partir de um acúmulo crescente de cromatismos e descontinuidades melódicas associadas às irregularidades rítmicas, ouvimos a “débâcle” ou naufrágio da valsa como forma musical, muito mais do que sua apoteose.
“La Valse” é a sabotagem da valsa como forma musical regular e uma demonstração de sua impossibilidade. Por isto, o coreógrafo russo Diaghilev teria se recusado a coreografá-la, declarando tratar-se do “portrait de um ballet” e não de um ballet propriamente dito. É esse aspecto marcadamente “visual” de “La Valse” que nos dá a chave para uma possível articulação entre a obra de Ravel e a obra de Kubrick: ambos apresentam a valsa como a forma recorrente e circular de um anseio pelo impossível que extravasa o plano sonoro/musical de expressão para ressoar até mesmo no vácuo do espaço sideral. Mas, se “La Valse” apresenta e faz visível o movimento abstrato de um rodopio incessante como o signo de uma impossibilidade, qual é a impossibilidade que aqui se manifesta?
O primeiro filme de Kubrick em que uma valsa aparece com algum destaque, “Paths of Glory”, insere a valsa em um contexto histórico nada lisonjeiro, o dos fuzilamentos perpetrados pelo exército francês, durante a 1ª Guerra Mundial, contra seus próprios soldados. Com efeito, a valsa neste filme é bailada na véspera de um destes fuzilamentos e o general com poder para evitar a execução é retirado de má vontade do baile para conversar a sós com o protagonista do filme. Continuamos a ouvir a valsa em BG ao longo da conversa entre os dois personagens, conversa que sela o destino dos soldados e dispõe impunemente de suas vidas. O contraste entre a suave elegância da trilha sonora e a crueza infame do diálogo destrói qualquer possibilidade de alusão nostálgica à “belle époque” através da valsa, como já insistia Ravel. A mera utilização de uma valsa qualquer, neste contexto, sugere a retomada de uma discussão sobre a impossibilidade da valsa que era musical e coreográfica em Ravel e que se torna propriamente audiovisual na obra de Kubrick.
A presença da valsa perpassa vários filmes de Kubrick e se reconfigura de diversos modos, sobretudo nos três filmes em que a questão da impossibilidade é abordada de forma radical: “2001 – uma Odisséia no espaço”, “A Laranja Mecânica” e “Eyes Wide Shut”. A valsa aparece, nesses três casos, como o índice sonoro de uma regularidade impossível: a impossível regularidade da tecnologia e da linguagem em “2001” – um filme sobre um supercomputador que enlouquece de maneira humana, demasiado humana; a impossível regularidade do estado e da sociedade em “A Laranja Mecânica” – um filme em que até mesmo a morte é considerada melhor do que a submissão ao impossível processo social de reificação dos seres humanos; e, por fim, a impossível regularidade das noções de subjetividade e de sexualidade em “Eyes Wide Shut” – um filme em que o verdadeiro protagonista (evidenciado pelo uso da “Valsa nº2”, de Shostakovich, na sequência de abertura do filme) é a própria impossibilidade entendida como o movimento incessante do desejo.
Valsa da tecnologia, valsa da violência, valsa do desejo: em Ravel e Kubrick, a impossibilidade manifesta na valsa apresenta o problema da própria impossibilidade como um problema de caráter civilizatório maior para a sociedade e seus diversos sujeitos.
Bibliografia
- – BENSON, Michael. 2018. 2001: Uma Odisséia no Espaço – Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a criação de uma obra-prima. Editora Todavia.
– CHION, Michel. 1997. La música en el cine. Paidós Editora.
– CIMENT, Michel. 2017. Kubrick. Ubu Editora.
– FRANCFORT, Didier. 2018. La dernière valse du Titanic, Nouvelles Editions Place.
– JANKÉLÉVICH, Vladimir. 1956. Ravel, Editions du Seuil.
– KANT, Immanuel. 1993. Crítica da Faculdade do Juízo. Editora Forense.
– KIEL, Pauline. 2000. Criando Kane e outros ensaios. Editora Record.
– LEDDA, Sylvain. 2016. Ravel, Gallimard.
– MUSSET, Alfred de.2003. La confession d’un enfant du siècle, Le Livre de Poche.
– PAOLACCI, Claire. 2017. Danse et Musique, Fayard.
– RAVEL, Maurice. 2016. Ecrits et propos sur la musique et les musiciens, Bibliothèque Ombres.
– WALKER, Alexander, TAYLOR, Sibil e RUCHTI, Ulrich. 1999. Stanley Kubrick Director, A Visual Analysis. W.W. Norton&Company.