Ficha do Proponente
Proponente
- Denise Costa Lopes (PUC-Rio)
Minicurrículo
- Doutora em Artes Visuais EBA/UFRJ, bolsa CAPES na Université Lumière Lyon2. Prof. de Cinema do Dep. de Comunicação da PUC-Rio desde 2010. Coordenadora da plataforma Transcinema: Estudos de Cinema e Outras Artes, onde ministra cursos de Cinema, Pintura e Arte Contemporânea. Mestre pelo Dep. de Cinema e Vídeo da UFF. Bacharel em Comunicação ECO/UFRJ. Leciona em cursos de cinema, desde 2005: UFF, UNESA e ECDR. Seu interesse está na interseção do cinema com as outras artes, em especial com a pintura
Ficha do Trabalho
Título
- Uma baía, perspectivismo ameríndio e experimentação sensorial imersiva
Mesa
- Cosmopoiesis: Estratégias de Fazer Mundo no Audiovisual Contemporâneo
Formato
- Presencial
Resumo
- Uma baía, de Murilo Salles, adota o perspectivismo ameríndio para falar do homem-bicho que vive na e da Baía de Guanabara. Com um virtuoso trabalho experimental de som e imagem, o documentário engendra uma poderosa experiência sensorial imersiva que nos faz ver e sentir como os homens e os bichos que ali habitam, nos afastando do antropocentrismo, abolindo hierarquias ontológicas e abrindo possibilidades de construção de novos mundos e sentidos a partir uma visualidade marcada pela diversidade.
Resumo expandido
- Uma baía, de Murilo Salles, fala do homem-bicho que vive na e da Baía de Guanabara. Comparada ao paraíso por Américo Vespúcio nas Cartas do Novo Mundo na abertura do documentário, ela é vasculhada nas contradições dessa descrição. Com um virtuoso trabalho experimental de som e imagem, o longa engendra uma poderosa experiência sensorial imersiva, que nos coloca em meio à respiração de caranguejos, mergulhadores, estivadores, peixes… Acompanhamos a luta pela sobrevivência nesse microcosmo brasileiro a partir de um perspectivismo que nos faz ver e sentir como os homens e os bichos que ali habitam, nos afastando do antropocentrismo, abolindo hierarquias ontológicas e abrindo possibilidades de construção de novos mundos e sentidos a partir uma visualidade marcada pela diversidade.
Altamente político e praticamente sem falas, o filme nos faz penetrar num Brasil invisível. Oito locais às margens da Baía são visitados. Em cada um, um protagonista é eleito. Em Paquetá, um cavalo, filmado em close constante, é o escolhido. Mostrado como mais um escravizado local, assistimos à sua estafante jornada a partir de uma câmera GoPro acoplada à sua barriga. O trote de suas patas é mostrado de um ângulo talvez nunca visto. Inevitável não associá-lo a Muybridge, Béla Tarr, às vanguardas dos anos de 1920 ou às inovações de Chris Marker. Filiado à essa trajetória de transgressão das formas clássicas do cinema e de aproximação com as artes plásticas, Uma baía é ainda uma obra com viés antropológico.
Em diálogo com as raízes ancestrais que habitam a Baía desde o descobrimento, o filme nos faz lembrar do longo caminho de sujeição, falta de oportunidades, exclusão e abandono a que essas comunidades foram e ainda são submetidas. Volta assim às origens de uma exploração secular de índios tupinambás-tamoios e de escravos africanos, primeiros a se fixarem na baía. O processo de exposição da forma insalubre da vida local é pontuado ainda pela exibição de trechos de noticiários de TV que mostram a escalada da degradação política que vive o país e que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro. A apatia da platéia nessas cenas atesta a incomunicabilidade desses apelos e parece sugerir que essa alienação pode ter aberto brechas para a cooptação ao discurso bolsonarista, que começou a chegar diretamente a estes por meio de aplicativos de celular. Um personagem evangélico, único com voz no filme, parece pontuar outro fator determinante nas últimas eleições, o uso político dessa religião.
Uma baía registra o patrimônio mitológico, lingüístico, arqueológico e sociológico local, tira identidades da invisibilidade e constata que a condição insalubre de homens e bichos é fruto de uma política perversa de descaso com os menos assistidos. Mostra a Baía como uma só cultura, construída de múltiplas naturezas, unindo animais e humanos e trazendo a animalidade para o domínio da humanidade. Pois se no início do paraíso descrito por Vespúcio, animais e homens eram uma coisa só, esses animais são ex-humanos e não o contrário. Compactua assim com a visão da cosmologia ameríndia (Castro), onde cada cultura constrói seu cosmo e interfere no seu entorno, estabelecendo conexões entre vivos e mortos, homens, animais, plantas e toda humanidade na busca de uma sobrevivência possível.
Os corpos de animais e homens colocados em pé de igualdade, assumem a centralidade da matéria social, ríspida, cruel, implacável e irredutivelmente inalterável. Como numa instalação sonora visual, sentimos o mesmo desconforto dos personagens. Câmeras muito próximas nos colam às suas aflições, nos fazendo ver e sentir suas dores e anseios como nossas. Se é o ponto de vista que cria o sujeito, se é através dele que se ativa, agencia ou se irradia uma consciência (Castro 2002), é só por meio da visão por novos pontos de vista, como faz Uma baía, que poderemos nos livrar da eterna solidão de sermos “os eleitos”, incapazes de viver em harmônia com os outros e de deixarmos de ser uma ameaça à vida no planeta
Bibliografia
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