Ficha do Proponente
Proponente
- Fernanda Albuquerque de Almeida (USP)
Minicurrículo
- Possui doutorado (2019) e mestrado (2014) em Estética e História da Arte pela USP e graduação em Educação Artística (2008) pela Unimesp. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre Políticas da forma: figurações do amor em Agnès Varda no departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP e participa dos Grupos de Pesquisa Laboratório de Investigação e Crítica Audiovisual e História da Experimentação no Cinema e na Crítica. Integra o Grupo de Estudos em Estética Contemporânea da FFLCH-USP.
Ficha do Trabalho
Título
- A cinescrita poética de Agnès Varda em A Ópera-Mouffe
Formato
- Presencial
Resumo
- A Ópera-Mouffe (1958) pode ser compreendida como uma cinescrita poética que rompe os limites das convenções da linguagem, criando horizontes de sentido. Que horizontes são esses? Esta apresentação visa responder essa pergunta por meio de uma análise interpretativa das palavras-imagens usadas e concatenadas nesse filme para evocar a oscilação dos sentimentos de esperança pela vida e angústia diante da miséria. Também busca indicar certa resolução do impasse resultante dessa oscilação.
Resumo expandido
- A Ópera-Mouffe (L’Opéra-Mouffe, 1958) é o quarto filme de Agnès Varda, feito após seu longa-metragem de estreia, La Pointe Courte (1955), e dois curtas encomendados pelo Escritório de Turismo da França, Ô saisons, ô châteaux (1957) e Du côté de la côte (1958). Resultou de um desejo da cineasta de criar algo para si própria e de uma constatação, a partir de sua experiência enquanto grávida: por um lado, ela sentia esperança pela vida por vir e, por outro, angústia diante da miséria cotidiana.
Essa coexistência de sentimentos antagônicos pode ser percebida ao longo do filme, estruturado como uma Ópera da Rua Mouffetard em nove atos. A primeira cena sintetiza o tema dessa oscilação e o modo como será desenvolvido. Ela inicia com o corpo nu de uma mulher grávida, passa pela associação de sua barriga arredondada com uma abóbora e, a partir dessa analogia, resulta em uma espécie de nascimento, por meio do corte da abóbora e da retirada de suas sementes. Logo após esse metafórico lançamento do ser no mundo, vemos a imagem de um homem de costas em idade avançada e postura curvada. Esta figura e sua posição sugerem certo cansaço. Ao mesmo tempo, porém, esse homem toca um instrumento musical, o que evoca a esperança subjacente à criação de mundos pela arte.
Por suas associações de ideias e estados de espírito, em uma narrativa na qual documentário e ficção, assim como real e imaginário, deixam de ter fronteiras entre si, o filme é geralmente associado pela recepção crítica à tradição do cinema ensaio. Não se trata, portanto, de uma história com começo, meio e fim, no sentido tradicional de uma trama, mas de uma concatenação de segmentos que revelam sentidos entre imagens, palavras e sons. A trilha sonora de Georges Deleure complementa essa estrutura, e sua letra realiza comentários bem-humorados e ritmados.
Varda relaciona, assim, figuras que remetem à esperança, tais como a barriga grávida, brincadeiras infantis e encontros amorosos, com figuras que remetem à angústia, tais como pessoas em idade avançada, embriagadas e titubeantes, muitas vezes enquanto caminham como se carregassem o peso de uma vida difícil. A feira livre na Rua Mouffetard possibilita uma aproximação similar, pois abrange uma abundância de legumes, frutas e verduras, bem como de carnes e miúdos. Como canta a trilha sonora, o filme se constitui “entre a repugnância e o desejo, entre a podridão e a vida”.
A proximidade entre os sentimentos da angústia e da esperança, ou entre as dimensões incomensuráveis da podridão e da vida, é promovida por uma forma particular de associação de ideias e sensações que revela o estilo da cineasta ou sua cinescrita. Varda opera imagens como palavras, cada uma contendo seu próprio significado, como na poesia, ao invés de ordená-las por meio de sintaxe ou história. Seus significados são entrelaçados por meio da montagem, que produz figuras de linguagem, a exemplo do esvaziamento da abóbora que se torna metáfora de um nascimento por sua afinidade com a barriga grávida.
É por isso que A Ópera-Mouffe pode ser compreendida como uma cinescrita poética que rompe os limites das convenções da linguagem, criando horizontes de sentido. Que horizontes são esses? Esta apresentação visa responder essa pergunta por meio de uma análise interpretativa das palavras-imagens usadas e concatenadas nesse filme para evocar a oscilação dos sentimentos de esperança pela vida e angústia diante da miséria. Certa resolução do impasse resultante dessa oscilação é indicada pela hipótese de que o filme suscita o sentimento de ternura diante de qualquer um, especialmente quando sugere o reconhecimento dos gestos semelhantes entre indivíduos distintos, captados em primeiro plano. Deste modo, os horizontes de sentido abertos pelo filme revelam, por meio dos sentimentos e gestos compartilhados, a possibilidade de uma existência na qual as diferenças não anulem as semelhanças que sustentam o vínculo social.
Bibliografia
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