Trabalhos Aprovados 2022

Ficha do Proponente

Proponente

    Guryva Cordeiro Portela (UNICAMP)

Minicurrículo

    Ator, Mestre em artes da cena (Unicamp), doutorando em Multimeios (unicamp), foco de pesquisa: O ator e a produção audiovisual. A imagem fílmica do ator e produção simbólica e signos. Pesquiso e estudo o ator em variadas culturas (especialmente as fora do eixo eurocêntrico), dando ênfase ao programa gestual do ator, seu corpo, o movimento e as técnicas que podem ser analisadas na imagem fílmica. Trazendo para a analise ator que contrapõe o cânone normativo.

Ficha do Trabalho

Título

    A gira de Lázaro – Esú e Pomba Gira em Madame Satã

Seminário

    Cinemas pós-coloniais e periféricos

Formato

    Presencial

Resumo

    Proponho articular reflexões sobre o corpo preto, homossexual, periférico e marginalizado, a partir da análise do ator e da personagem do filme Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002), debater a perspectiva do encantamento da macumba na prática de produção de conhecimento. Com foco no corpo, utilizo como referência metodológica a imagem pelo viés da epistemologia da macumba defendida por Luiz Antônio Simas e José Rufino, e tecer uma análise a partir da codificação gestual e de movimento de Lázaro Ramos

Resumo expandido

    Esta comunicação propõe uma análise do filme Madame Satã, a partir das associações do uso do corpo de Lázaro Ramos na leitura da personagem. Um dos objetivos é evidenciar a rede de significações que interpelam e conectam corpos e discursos e a construção das identidades na experiência da travestilidade. Buscaremos tecer uma análise do gestual e do movimento com base em quatro cantos da encruzilhada da personagem: o macho, a musa, a travesti e o marginal. Quero, assim, entender como corpo e narrativa se conectam, produzindo identidades que destoam da estética heteronormativa eurocêntrica, trazendo um olhar ao corpo antropofágico da cultura afro-indígena brasileira.
    Para tanto, parece-nos necessário discutir alguns pontos relacionados aos conceitos que norteiam essa reflexão: a presunção da materialidade de corpos, gêneros e identidades, a partir da estética da encruzilhada, com enfoque na epistemologia da macumba (RUFINO; SIMAS, 2018); a produção da imagem de corpos sexualizados, marginalizados e mitificados com referência às entidades conhecidas como “da rua” (Esú e Pomba Gira); e o corpo como referência e estrutura simbólica;. A análise da atuação de Lázaro em Madame Satã, na esteira do pensamento epistemológico da macumba, nos dá suporte para um debate fundamental centrado no corpo marginalizado da periferia, no corpo ‘viado’, no corpo livre, no corpo “puta”, expressos nas entidades da rua – que se expressam em sua totalidade.
    A macumba é fundante na formação cultural brasileira, vai além do corpo periférico, se constitui como um corpo social, portanto, busco entender este corpo e pensar além dos padrões impostos na sociedade, vislumbrar as encruzilhadas de possibilidades filosóficas e culturais. A partir deste entendimento conceitual, observo o corpo de Lázaro na Madame Satã, seu riso debochado, sua ginga e sua fúria. A gira que Lázaro dá a Satã é a do povo preto, pobre e excluídos, mas é exatamente na fresta do mundo, entre o material e o imaterial, que o imagético e simbólico criado no corpo renasce, que os encantados das culturas ancestrais criam suas possibilidades e corporificam reexistindo. Ao analisar o corpo na macumba, transmutamos para o corpo do ator que gira e se transveste, e assim traçamos uma linha que cruza e entrecruza e que representa um espírito formador, que se reveste na ancestralidade das tradições afro-indígenas para sobreviver aos estigmas da sociedade colonial euro-centralizada.
    Pensar Madame Satã é refletir o corpo livre do mandingueiro, o corpo livre da pomba-gira, do travestimento sem amarras sociais e a liberdade de quem gira na capoeira e nas rodas de samba, é pensar no corpo sem padronizações sociais e sem o fetichismo criado pela sociedade branca para esses corpos e culturas. A gargalhada subversiva que “debocha e reinventa a vida” (218:13).
    Analisar Madame Satã através do ator-personagem é olhar para o corpo cultural brasileiro, o cruzo cultural performático das entidades da rua ao estilo das boates ‘afrancesadas’ das grandes cidades. A fusão do cruzo na esteira antropofágica, no corpo ancestral que gira, brinca e se comunica na forma da rua, dos malandros, putas e travestis, uma experiência que rompe com os estereótipos, “a partir das noções de ancestralidade e de encantamento praticamos uma dobra nas limitações da razão intransigente cultuada pela normatividade ocidental” (2018:11) e em diálogo Le Breton (2007:24) dá um alerta: “De que corpo se trata? Esquecemos com frequência o quão absurdo é nomear o corpo como se fosse um fetiche, isto é, omitindo o homem que o encarna,”.
    O corpo preto/indígena morre assassinado e se reinventa em giras, lutas e festas. O corpo de Lázaro/Satã é político, de festa; ator e personagem aqui se fundem, ambos corpos pretos periféricos, que na ginga sobreviveu ao silenciamento e ao extermínio. Existir e rir é político, gargalhar é grito de guerra, a gargalhada de deboche de Satã é o aviso da entidade ao mundo material, que estas forças não serão extintas.

Bibliografia

    Bento, Berenice. Transexuais, corpos e próteses. Labrys estudos feministas, 4. 2003 http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys4/textos/berenice1.htm.
    Butler, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. Em Louro, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. (2ª ed., pp. 151-172). (T. T. Silva, Trad.). Belo Horizonte: Autêntica. 2007
    Le Breton, David. A sociologia do corpo. (2ª ed.). (S. M. S. Fuhrmann, Trad.). Petrópolis: Vozes. 2007
    Pelúcio, Larissa. (2004). Travestis, a (re)construção do feminino: gênero, corpo e sexualidade em um espaço ambíguo. Revista Anthropológicas, 15(1), 123-154. http://www.ufpe.br/revistaanthropologicas/internas/volume15(1)/Artigo%205.pdf.
    Simas, Luíz Antônio. Rufino, Luíz. Fogo no Mato: a Ciência Encantada das Macumbas – 1ed. – Rio de Janeiro: Mórula, 2018
    Simas, Luíz Antônio. O Corpo Encantado das Ruas – 9ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019